quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Reflexões - Capítulo V

CAPÍTULO QUINTO
Podemos chorar a morte de nossos amigos com aqueles amigos que nos restam, que sobrevivem; ou a morte de nossos pais com nossos irmãos; ou a de nossos benfeitores com as pessoas que também participaram de suas liberalidades. Tudo isso, sem dúvida, nos é permitido; mas devemos, nisso, guardar uma tal moderação a ponto de que nosso luto e nossa tristeza sejam somente visíveis de fora e que interiormente nossa paz e nossa alegria não sejam em nada incomodadas. Deus tem grandes bondades para conosco; Ele provê cuidadosamente tudo o que nos é necessário, de forma que aquilo que, por causa da máscara, parece um mal, na verdade, se descobre como um bem quando a máscara é levantada. Para viver de maneira feliz, temos em nós mais do que nos é necessário; não há nada além do que temos que mereça ser desejado; visto que, tão logo nos acontece de desejar, infalivelmente nos tornaremos miseráveis. A alegria de nossa condição é tal que a felicidade se comunica a nós gratuitamente, enquanto que a miséria nos custa caro. À primeira [à felicidade; ndt] não falta coisa alguma; ela nos permite tudo adquirir com tanta facilidade que não temos sequer a dificuldade de desejá-las. Às vezes, podemos mesmo dizer seguramente que nisso é que ela tem menos coisas a fazer por nós. Mas, a outra [a miséria; ndt] nos é vendida de forma tão custosa que é ao preço de nossa paz e de nossa liberdade que a adquirimos. Temos, como fundos próprios, e sem que precisemos retirar isso de outra pessoa, o meio para vivermos felizes; como é possível que não vivamos assim? E por que nos julgamos tão pobres por não possuir as coisas das quais não temos a menor necessidade? Na medida em que a Fortuna nunca será suficientemente poderosa, como também nunca o saberá ser, para oprimir nossa vontade, não devemos sentir nenhuma apreensão, pois nossa paz se conserva sempre inviolável dentro de nós. As coisas que ela usa, pensando em nos assustar, só conseguiriam assustar a uma criança. Tiremos a sua máscara e descobriremos que, por um feliz engano, aquilo que nos havia surpreendido como um mal é, na verdade, um bem que ela revestiu com uma aparência contrária. Perdemos aquela pessoa tão cara, tão cuidadosa, que ocupava um lugar semelhante ao lugar que nossos pais ocupam em nosso coração? Aquele amigo tão fiel, tão poderoso, cujos maiores cuidados eram nos agradar e nos obrigar a ele, veio a morrer? Talvez, sua morte nos poderá suscitar algo melhor, talvez a sua tumba nos produza bens maiores do que os que esperávamos de uma sua longa vida. A Fortuna brinca conosco, como uma mãe brinca com seus filhos; ela cobre seu rosto para lhes fazer medo; eles temem, eles se assustam no início; mas tranqüilizando depois e tirando aquilo que a escondia, seu susto se converte em alegria; e tão logo ela se desfaz da fantasia, eles não fogem mais e correm até a ela, tomam a máscara com raiva de suas mãos e, a partir de então, brincam com ela também. Que segurança tão forte, para não dizer tão durável, poderia sustentar a vista dos males que tocou o mais paciente dos homens? Eu vos pergunto, quem é que, tendo visto a perda de todos os seus bens, seguida da perda de seus filhos, poderia se imaginar seu corpo coberto de chagas e de podridão e, num estado miserável – cujo simples pensamento não apenas causa piedade, como também horror? Ele teria desmascarado sua miséria e, a tendo desnudado daquilo que havia de terrível em sua aparência, ele encontraria nela não apenas motivo de consolação e alegria, mas também motivo para reparar de forma muito mais vantajosa todas as suas perdas até ao ponto de não desejar mais nada. Seu mal era como uma casca que cobria um fruto perfeitamente saboroso. O Sábio brinca com os males, como as crianças brincam com nozes; depois que elas se divertiram bastante, elas sabem muito bem as quebrar e separar o interior da casca. É assim que nós devemos fazer com as calamidades; é preciso tirar delas o que há de útil e jogar fora todo o resto. E visto que constantemente as coisas do mundo são fantasiadas, não há outra segurança maior do que essa, no comércio que necessariamente temos que ter com elas, do que só lhes mostrar o nosso rosto e nunca lhes permitir ver o coração.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 193-195.

Nenhum comentário:

Postar um comentário