domingo, 5 de setembro de 2010

Primeiro meio - Capítulo V

CAPÍTULO QUINTO
Eis como a moderação  produz bens infinitos. A Paciência não produz menos, e sua prática é mais fácil para nós, visto que, sem dúvida, um mesmo estudo pode nos servir par uma e para outra, e nos é suficiente instruirmo-nos naquela para sabermos usar esta. Encontraremos esta mesma conformidade nos vícios que são seus opostos. A impaciência se excita e cresce pela cobiça; e começamos a temer tão logo começamos a esperar. Cortemos esta raiz fatal de todos os nossos males; entricheiremos nossas esperanças e nossos desejos, experimentaremos que a má sorte pode não apenas ser sofrida com paciência, mas também com alegria. Não sei quem foi aquele, pelo exemplo de quem, pretendo justificar esta verdade; mas só pode ser um homem excelente que, estando em risco de naufrágio, jogou todos os seus bens no mar e rendeu graças à Fortuna pelo fato de ela, por uma feliz infelicidade, lhe ter obrigado a descarregar ao mesmo tempo seu navio e seu espírito daquilo que poderia igualmente fazer afundar um e outro [no original latino, Nieremberg anota: "Crates, sive Zeno, magnus quidem, quicumque sit, aspero Neptuno exoneraturus mercibus navem libens, laetus opes suas in mare iecit, & gratias fortunae agens, inquit: Bene, o Fortuna, bonorum mihi magistra". Trata-se, portanto, do filósofo Crates de Tebas (c. 368 a.C. - c. 288 a.C.), grego pertencente à escola cínica de filosofia. Foi professor de Zenão de Cítio e discípulo de Diógenes de Sínope; ndt]. Que cada um de nós faça o mesmo num encontro semelhante e mantenha, nesse momento, uma conversação como essa. Fortuna, eu te agradeço pelo cuidado que tu testemunhas ter com minha salvação. Tu me obrigas bastante, vindo buscar, pessoalmente, aquilo que, há bastante, eu tinha que te devolver. Tu me fizeste um grande favor ao me permitires usar daquilo que não é meu; mas tu me fizeste um favor ainda maior ao retirá-lo de mim, evitando, por esse meio, que eu me enganasse. Tu me advertiste docemente de meu dever. Foi a melhor coisa que tu me poderias ter feito. Compreendo suficientemente tua intenção. Tu queres minha emenda, tu queres que eu retorne a mim mesmo, que eu trabalhe no sentido de me tornar um homem de bem, que eu obedeça a Deus, que eu me submete inteiramente às Suas vontades, que eu tenha uma perfeita resignação. Tu te serves de teu direito, vindo retomar aquilo que te pertence, e por uma agradável severidade, que vale, sem dúvida alguma, muito mais do que tua doçura, tu me exortas não apenas a abraçar a virtude, como também a me dirigir para ela, tu me obrigas a ela. Eu bendigo a tempestade que tu me suscitas, pois ela me lança no porto; eu te rendo graças por me encontrar inteiro e são depois do naufrágio. Restaram-me ainda muitas coisas que tu poderias ter levado; reconheço francamente que elas te pertencem todas. Tu me fizestes tantos bens, dos quais tu nem sequer te lembras mais, mas eu conservo a memória de todos eles. Retoma tudo o que tenho fora de minha pessoa, sobre a qual tu não tens nenhum direito; da mesma forma que eu não tenho nenhum direito sobre aquelas que tu me deixas, porque tu mostras suficientemente o quanto desprezas o que não te pertence. Queira Deus que sejamos capazes de resolver fazer com ela aquilo que um certo homem fez com aqueles que o assaltavam; como ele os ouviu entrando em sua casa, ele lhes disse peguem tudo aquilo que quiserem, e não se colocou em posição de os impedir. Os ladrões, levando tudo o que lhes pareceu mais precioso e lhe deixando a bolsa, contra a sua expectativa, foram seguidos por ele que lha apresentou a eles, acrescentando, eis algo de que vocês se esqueceram. Essa frieza e essa ingenuidade, certamente, lhes agradou tanto que não somente eles lha deixaram, como também lhe devolveram todo o resto. Que sabemos nós do que a Fortuna poderá fazer, se usarmos dos mesmos modos com ela? Quem sabe ela não ficaria de tal forma tocada com um procedimento tão franco a ponto de fazer o mesmo conosco? [no original latino, Nieremberg se refere a "cristão" como sendo o personagem desse relato; ndt].

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 213-215.

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