CAPÍTULO NONO
Como não há nada de mais próprio ao homem do que sofrer, nada lhe é mais necessário do que a Paciência. É um raro e maravilhoso remédio que recebemos da natureza, para nos servirmos contra nossos males; que tem a virtude de nos curar de nossos mais agudos problemas e que, por uma propriedade maravilhosa, acaba com a ponta de todas as flechas da má sorte. Nossa condição não é mais infeliz do que a dos animais; cada um deles tem seus próprios ditames. O Javali ferido corre para as ervas. O Dragão, para o alface selvagem. A Cobra, para a erva-doce. A Tartaruga, para o tomilho. Há também os que têm seu remédio mais pronto e mais próximo: o cão, por um privilégio particular, encontra sua cura em si mesmo e não tem precisão de outro balsamo do que de sua língua. Nosso universal e soberano ditame é suportar pacientemente, sem desgosto e sem murmúrios, nossas calamidades. Não é suficiente para nos explicar dizer que não há nada de mais próprio a nós do que sofrer. Digamos que nos seja absolutamente necessário. Consequentemente, não há nada de que tenhamos mais necessidade do que de paciência. E podemos dizer com ainda maior razão que, por uma graça antecipada, o hábito que temos de sofrer faz com que não soframos com nada. Tornamo-nos impassíveis sofrendo pacientemente; por esse meio, nosso espírito se torna invulnerável às mais poderosas flechas da Fortuna; e é apenas por causa do vício contrário, pela impaciência, que ele pode ser ferido, como Aquiles no calcanhar. Se a vantagem que esse hábito excelente nos traz não chega ao ponto de nos impedir de buscar os males, ele nos faz, pelo menos, sofrer sem coerção e sem pena quando eles nos chegam. Através desse meio, escapamos aos mais duros problemas desta vida, criamos uma muralha segura contra toda sorte de infelicidade. Portanto, soframos agradavelmente aquilo que precisamos sofrer por necessidade. Assim, tornaremos nossa paciência ainda mais gloriosa do que se nós adquiríssimos o mérito a partir de uma ação voluntária e livre. Nossas mãos, nossos pés e as outras partes de nosso corpo se tornaram ainda mais inhábeis em suas próprias funções do que incapazes de sofrer. Seja como for que elas estejam [todas partes de nosso corpo; ndt], eles poderão servir de matéria para nossa virtude, elas estarão sempre em bom estado para isso, mesmo depois da mais cruel violência do fer e das doenças. Um Sofista afligido pela gota dizia, eu não tenho pés nem mãos quando é preciso que eu coma ou que eu caminhe, mas eu os tenho quando é preciso que eu sofra [no original latino, Nieremberg escreve: “Egregie Herodes Sophista, dum podagra & chiragra laborabat. Cum, inquit, edere oporter, manus non habeo; oportet progredi, non sunt mihi pedes; oportet dolere, tunc & pedes mihi sunt, & manus”. Trata-se, portanto, de Herodes Ático (101-176), também conhecido como Lúcio Vibúlio Hiparco Tibério Cláudio Ático Herodes, que foi um retórico greto e político a serviço do Império Romano, famoso pela fortuna que possuia. Sua vida é conhecida a partir das obras de Filóstrato (170-250), sobretudo no texto Vida dos Sofistas; ndt]. Isto justifica que, por mais impotente e mutilado que seja nosso corpo, podemos nos gloriar de ser inteiramente capazes de sofrer; é nisso que consiste nossa perfeição; e o sofrimento é tão conforme à nossa natureza que podemos sofrer nas mãos e nos pés, quando não temos quase nem mãos nem pés. Não pensemos que há contradição nisso, mas saibamos que quem não pode sofrer neles, não pode verdadeiramente crer possui-los. Não nos faltará nunca suficientes motivos para exercermos nossa paciência. Podemos mesmo estar certos de que nós é que faltaremos aos motivos, quando nosso corpo mesmo vier a nos faltar.
NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 220-222.
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