terça-feira, 21 de setembro de 2010

Primeiro meio - Capítulo XXIII

CAPÍTULO VIGÉSIMO TERCEIRO
São esses excelentes homens, esses Heróis, a quem é justo e necessário imitar; e não seus exemplos imperfeitos que o Paganismo nos deixou, de uma constância falsa ou certamente limitada, de quem pode sofrer muito, mas não por si mesmos. Em verdade, por mais razões que tenhamos para estimar tão altamente esse Filósofo [no original latino, Nieremberg escreve: “Reiicio omnino, quod proposuit Seneca, alioqui saepe verus, interdum Christianus, Catonis exemplum”. Trata-se, portanto, de Sêneca; ndt] cujos sentimentos são, às vezes, tão conformes às máximas e à pureza da doutrina Cristã que parece que ele os tirou da mesma fonte de onde ela [a doutrina cristã; ndt] veio, não há desculpas que justifiquem a morte de Catão como sendo devida ao mais alto efeito da verdadeira constância e de ter sido tão injurioso contra a virtude a ponto de ser honrado tão religiosamente por todos, por tê-la feito partícipe de uma ação tão cheia de fragilidade e de desespero [Lúcio Aneu Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.), em Sobre a tranquilidade da alma (XVI, 1-4), escreve: “Vem em seguida uma consideração que muitas vezes, e não sem motivo, entristece nosso espírito e o mergulha na maior inquietude: quando vemos pessoas de bem acabarem mal – Sócrates constrangido a morrer prisioneiro; Rutílio a viver no exílio; Pompeu e Cícero a se entregarem aos seus clientes; e Catão, este Catão, enfim, viva imagem da virtude, reduzido a testemunhar publicamente, atirando-se contra sua espada, que a República perecia ao mesmo tempo que ele. Como não se afligir com a idéia de que a fortuna paga tão injustamente os méritos dos homens? E que esperar para si mesmo, quando os melhores dentre eles são os mais maltratados?”. Trata-se de Marco Pórcio Catão (95 a.C. – 46 a.C.), que foi um político romano e filósofo adepto da escola estoicista. Segundo se conta, Catão, negando-se a viver em um mundo governado por César, suicidou-se, segundo a crônica de Plutarco, jogando-se contra sua própria espada; ndt]. A que título, eu vos pergunto, pode-se ter como constante aquele que foi abatido com o mesmo golpe que derrubou a República? Aquele que não tinha mais coração, tão logo ela [a República; ndt] não tinha mais liberdade? Certamente, isso é apenas uma glória ilegítima, uma reputação vã e sem fundamento, acerca de uma constância que só foi sustentada sobre a prosperidade da Pátria, de uma grandeza de coragem que não conseguiu suportar o objeto presente de suas calamidades. Eu confesso com ele que o combate de um homem magnânimo contra a má sorte é uma ocasião que merece atrair os olhos de Deus mesmo; é um espetáculo digno de que Ele se distraisse um pouco de suas obras para olhar. Mas, o que se pode pretender de semelhante num caso como este? O que encontramos em Catão que não possa ser encontrado em Sardanápalo [em português é mais conhecido como Assurbanípal (c. 690 a.C. - 627 a.C.), que é considerado o último grande rei dos assírios; ndt], ou entre os mais frágeis, entre os mais covardes dos homens? Se nós os considerarmos após a desolação de seu país, quando só um casebre restou em meio às ruínas públicas, compreende-se como ele mesmo é o motivo de sua queda; ele caiu sem ser empurrado por ninguém; aquele de quem admiramos tanto a coragem, testemunhou menos do que as crianças e as mulheres – que normalmente caem de medo quando, por exemplo, alguma coisa faz barulho e não lhe causa mal algum. Mas, não credes, poder-se-á dizer, que, estando de tal maneira encurralado pelo inimigo, os meios de escapar lhe tenham igualmente sido tirados – pelo mar ou pela terra – a ponto tal que ele tenha tido o coração de abrir para si um caminho tão difícil para se subtrair da tirania e se salvar de uma prisão tão estreita? É uma bajulação através da qual pretende-se desculpá-lo; mas, exatamente por causa disso, ele é sobrecarregado, se torna ainda mais culpado; é como querer dar a uma fuga as cores de uma justa retirada; é como revestir uma covardia com as aparências de uma boa ação. Ele fugiu das mãos, não tendo conseguido fugir dos pés. O que importa da forma como foi, visto que sempre vai se tratar de uma fuga? A diferença não é fazer ou não fazer a coisa, ela está na maneira de fazê-la. A indústria de sua fuga não o desculpa em nada, não apaga a censura. Isso foi a invenção de sua fraqueza, que sugeriu isso a ele em meio à absoluta impossibilidade de fugir de outra maneira. Mas, o que pode temer aquele que tão frequentemente teve alguma coisa contra a Fortuna? Foi ela mesma quem deu motivo para que ele ficasse apreensivo. Será possível que ele não a conhecia, tendo estado tantas vezes em suas mãos? Seguramente, ele a conhecia, mas ele abusou dessa falsa persuasão, que ela mudaria como é seu costume. Ele fundou sobre sua ligeireza a esperança de sua salvação. Mas, vendo que contra sua expectativa, ela se ligava firmemente a ele, ela não o largava de forma alguma, ela se obstinava por sua ruína, ele entendeu que este era o derradeiro golpe, vindo muito mais de uma deliberação do que de um capricho, e necessariamente interessado em sua perdição; assim, ele quis se reservar pelo menos esta miserável vantagem de se tornar o instrumento de sua própria perdição, a fim de receber um tratamento menos rude do que aquele que ele podia esperar dela; e por um conselho de sua delicadeza elegeu a morte como o menor dos males que ele cria lhe poder atingir. Mas, essa é uma constância muito fácil de suportar: a constância que escolhe e que faz dela mesma a matéria de seu exercício. Houve suficiente resolução para sustentar as ligeirezas da Fortuna e para não se deixar vencer pelos repentinos movimentos de sua cólera. Mas, ele não pôde se defender contra o seu ódio. É ser mediocremente corajoso rejeitar os arrebatamentos e as impetuosidades de seu adversário. Mas, é ser valente até o mais alto grau sustentar os mais grandes esforços e os sustentar por bastante tempo. Catão, como um covarde e um Atleta vil, fugiu da luta não somente sem ter vencido a Fortuna, mas sem nem mesmo a ter tirado do jogo; e sua infâmia cresceu ainda mais por causa da vaidade que seu inimigo teve de mostrar suas armas e suas forças todas e não ter recebido o menor ferimento. Que razão poderá haver aí para nomear como constante um homem que foi muito menos constante do que aquela que podemos chamar a inconstância mesma? Que razão poderá haver aí para estimar um Filósofo que desonrou tão fortemente este nome? Um Filósofo que ultrapassou, pela prontidão de sua fuga, a ligeireza de todos os movimentos da Fortuna [fala ainda de Sêneca; ndt]. Há ainda menos mérito o nome de justo, tendo feito uma tão grande injustiça contra a virtude, ao acreditar que haja alguma coisa pela qual o sábio deva renunciar à vida. Se, em lugar de ler o livro que Platão escreveu sobre a morte de Sócrates, ele tivesse visto aquilo que foi escrito por um outro Filósofo, que buscou em fontes melhores e tirou esta instrução, segundo a qual não há nada de tão digno que possa obrigar o Sábio a tirar a própria vida. Como é que, disse este Filósofo, aquele que se elevou por um generoso desprezo acima da Fortuna e dos acidentes humanos, renunciando à vida por causa deles, e, por causa disso, sustentando-os como males, estará de acordo consigo mesmo a ponto de não reconhecer como mal aquilo que não é honesto? [no original latino, Nieremberg escreve: "Utinam praelegisset conclusionem Theodori, non dissertationem Socraticam. Nullam satis magnam causam verissime affirmavit Theodorus Cytheraeus sapienti esse ad vitam siniendam". Com este nome, porém, não encontramos referência a nenhum filósofo. Há um nome que se aproxima e que está ligado à vida tanto de Platão como de Sócrates, que é o do matemático e filósofo grego Teodoro de Cirene (séc. V a.C.), que foi professor de Platão e, segundo consta, manteve constantes contatos também com Sócrates; ndt]. Se Catão tivesse aproveitado bem da comunicação que seus estudos lhe haviam permitido ter com Sócrates, ele teria aprendido dele que é uma extrema covardia se desfazer por sua próprias mãos, e que o soldado é um criminoso quando deixa seu posto sem a ordem daquele que o colocou ali. Louvar sua constância, depois disso, não seria prostituir ao vício os elogios da virtude? Não seria pecar com uma extremada ignorância tomar por generoso, por um valente Capitão, como o fez o seu Panegirista, aquele que teve menos coração e bravura do que um franzino e infeliz soldado que deixou seu posto sem ordem e, se é permitido falar assim, que deixou a vida sem ordem de ninguém; e, por uma mesma ação, se tornou culpado duplamente, tendo acrescentado à desobediência a fraqueza? Além do mais, não é nenhuma vantagem alegar que, na noite de sua morte, ele estudava ainda, ele se dedicava à instrução sobre o estado e a duração da outra vida. Há nisso muito mais motivo para dizer que seu estudo foi muito mais inútil para isso do que para dizer que ele tenha aprendido mal acerca da extensão da eternidade. Parece mais que ele teve medo de que ela não fosse suficientemente longa para ele e que se ele não se apressasse em morrer ele poderia não chegar suficientemente a tempo. Ele a mediu comparando-a com sua virtude que acabou tão cedo; mas ele podia muito bem tê-la esperado, como até então ele havia esperado pela Fortuna; e sem dúvida ele teria feito muito melhor colocando sua constância à prova do que se precipitando em fazer a tentativa da imortalidade.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 250-254.

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