terça-feira, 14 de setembro de 2010

Primeiro meio - Capítulo XX

CAPÍTULO VIGÉSIMO
De resto, os sofrimentos são também necessários, se não for para o bem daquele que sofre, pelo menos que seja para a instrução daqueles que ainda vão sofrer. E, assim como um bom Cidadão se expõe voluntariamente à morte pelo bem do Estado, sem dúvida, podemos dizer que, por essa via – não desculpando nosso sofrimento –, ensinamos aos outros a maneira como se deve sofrer: nosso exemplo é de utilidade pública, excita a coragem e a emulação nos outros, faz de nós objetos de imitação quanto a este fundamento infalível, que é saber que aquilo que se sofreu uma vez pode ainda ser sofrido, mas sofrido com mais paciência do que antes. Assim como a sabedoria da Natureza que fez o bambu com nós que se espaçam uns dos outros regularmente para que, assim, sua durabilidade seja maior e sua fraqueza reparada, também a Providência  e a sabedoria eterna tornaram firme e fortaleceram nossa enfermidade natural, suscitando-nos, de tempos em tempos, excelentes modelos de paciência, de quem pudéssemos aprender a suportar com constância a miséria de nossa condição; até a vinda daquele que sozinho foi capaz de reparar e plenamente sustentar essa mesma condição, pelo mérito infinito de sua morte e de seus sofrimentos [trata-se de Jesus Cristo; ndt]. No entanto, a fim de que nunca faltasse no mundo exemplos de paciência, ele deu ordem de que a sua fosse sempre soberanamente representada no mundo através daqueles que ele honrou com o nome de seus enviados e de seus Precursores; ele quis que Abel carregasse o mais eminente dos títulos. Ele o consagrou à inocência desse primeiro justo, por direito de origem, como princípio, e o transmitiu aos outros por privilégio, como se fosse uma rica herança da qual cada um deles teve uma parte igual; tendo querido que, por uma graça particular ligada a esta sucessão, ele tivessem que sofrer menos, pela consolação, que eles sofressem injustamente e que o rigor de seus sofrimento fosse moderado e atenuado pela alegria que lhes daria sua inocência. As calamidades dessa vida começam com a vida mesma. Elas se produziram no primeiro homem como se numa terra ingrata e infeliz; foram os frutos de seu pecado; mas, para que o remédio não estivesse distante do mal, a rebelião de Adão é que inventou os sofrimentos, mas a inocência de Abel deu início ao uso da paciência. Certamente, ela é a mais preciosa riqueza dos justos; eles não têm nada de mais caro, de mais agradável, do que sofrer com constância. Mas, não sejamos injustos com aquele que nos parece ser, aqui, o primeiro e o mais nobre exemplo dessa verdade, pensando que o mérito de sua paciência recebeu alguma diminuição pelo clamor de seu sangue, que subiu até ao Céu e se derramou no tribunal de Deus mesmo. Por que sua aparência teria sido favoravelmente recebida, e ela teria encontrado suporte e proteção se ela estava cheia de agruras e de impaciência? Não podemos dizer, de forma alguma, que Abel, sendo o primeiro dos homens a morrer injustamente, tenha sido aquele a mostrar, por isso, os fundamentos do Império da morte como infelizes e frágeis, já que, apesar dela, ele ainda vive e fala por seu sangue que não cessa de gritar por vingança. E como não poderiam ser frágeis sendo que estão estabelecidos sobre a injustiça e nada mais, sendo que a morte adquiriu poder sobre o mundo exatamente por esse motivo, entrando e reinando no mundo só por causa do pecado? Ela poderia muito bem se lamentar de ter dado seu golpe de forma muito inhábil, tendo podido mais felizmente tê-lo deixado cair sobre Caim, justificando dessa forma o primeiro ato de seu rigor, exercendo-o sobre aquele cuja malícia tornava o golpe bastante digno, cujos pensamentos e premeditações do crime o declaravam suficientemente culpável. Mas, não foi sem mistério que ela errou dessa forma, visto que, por uma feliz necessidade de nossa salvação, é preciso que, para dar lugar ao efeito da condenação que lhe foi pronunciada, ele tenha feito morrer um justo; dessa forma, ela se tornou criminosa, para que ela mesma pudesse morrer pela mesma morte daquele em quem reside a soberana justiça. Ela gritou também, no início, por um secreto presságio de sua derrota segura, o mesmo que Heron gritou vendo partir da mão do caçador a ave de que ele seria a presa [no original latino, Nieremberg não menciona nenhum Heron, mas coloca esse mesmo argumento na boca de Santo Efrém (306-373), como se ele o tivesse contado, mas não refere o nome do personagem; ndt]. Portanto, ela morreu naquele contra quem ela não tinha nenhum poder, já que seu poder vem do pecado, do que ele, porém, era soberanamente isento.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 243-246.

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