segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Oitavo meio - Capítulo II

CAPÍTULO II
Não estaremos praticando a Virtude se não fizermos progresso nessa prática. Para estarmos firmes nisso, é preciso ir sempre mais adiante; ela não será constante se não se mover sempre. Não é verdade que não conseguimos nos manter por muito tempo de pé num mesmo lugar, numa mesma postura? E que é mais fácil ficar de pé quando nos movemos e caminhamos? Se considerarmos o corpo humano na sua consistência e sobre seus pés, nós o descobriremos mais adequado à ação do que ao repouso. Sem dúvida, ele é mais feito para avançar do que para ir para trás. Ora, por que pensamos que Deus tenha querido fazê-lo assim? Qual terá sido o seu [de Deus; ndt] desígnio nisso? Não terá sido para nos ensinar que, estando como estamos no fluxo contínuo das coisas do mundo, que sempre seguem em direção a seu fim, ou para melhor dizer, que correm em direção de seu aniquilamento, não seríamos capazes de evitar sermos levados com elas, se não fôssemos capazes de resistir à sua rapidez, se não fôssemos capazes de ir contar a corrente e combater sua violência. É por isso que, certamente, é preciso sofrer com todas as forças. De outra forma, é bastante seguro que, sem que haja nosso desígnio, ou se houver nossa negligência, afundaremos e não seremos capazes de evitar o naufrágio. É uma infelicidade infalível para quem age preguiçosamente quanto à prática da Virtude; este é o final ordinário dos preguiçosos e dos folgados. Nesse sentido, a Sabedoria divina quis se acomodar aos sentidos e ao alcance da sabedoria humana, que, no cegueira do Paganismo, às vezes, teve sentimentos razoáveis suficientes; quando, pela boca de um de seus principais oráculos, condenou aqueles que se enjoam de fazer o bem e que devem ser lançados, com os pés e as mãos amarrados, nas trevas, para sofrer as penas eternas, cujo rigor extremo não pode ser representado por nenhuma imagem de dor, por nenhum choro ou por nenhum gemido contínuo. É por isso que Platão, falando dos suplícios preparados para os malvados na outra vida, relata que um célebre Tirano foi punido; dizendo que ele [o tirano; ndt] tinha a cabeça coberta – particularidade que denota a ignorância desse criminoso e que serve para nos fazer compreender que ele não conhecia o bem, que ele não o seguia [no original latino, Nieremberg escreve: “Hoc ritu narrat Plato Ardiaeum saevire: ubi nec oblitus tenebrarum exteriorum, & fletus, & stridoris”. O tirano a que se refere o tradutor é um personagem de Platão (c. 428 a.C. – c. 348 a.C.), descrito no livro X d'A República, (entre 614b-621b) quando o autor fala do Mito de Er ou da Reminiscência, que, de certa maneira, descreve a crença numa forma de purgação da alma que cometeu injustiças durante a vida. Ali, Platão apresenta Ardieo, tirano de uma cidade da Panfília que, segundo o relato, havia matado o pai e o irmão mais velho, além de ter realizado uma série de atos nefastos; ndt]. Mas, o Filho de Deus julgou tão pouco necessário este rito que, nos tendo tirado das trevas do erro e nos trazido para a luz de sua doutrina, e nos tendo aberto o caminho que devemos seguir, julgou não haver mais desculpas para nós se viermos a falhar e, sem dúvida, nosso crime procede muito mais de malícia do que de ignorância. A distração era perdoável para aqueles que caminhavam à noite, que não sabiam para onde estavam indo e não tinham nem tochas nem guias. Se, não obstante isso, eles quisessem que sempre se seguisse em frente, eles condenassem extremamente a preguiça e a ociosidade, poderia haver alguém que pudesse nos justificar, a nós que estamos esclarecidos e sabemos certamente a rota que devemos manter? Nós que, ora somos bons, ora péssimos; às vezes seguimos sem erro, e outras vezes vacilamos; ontem éramos diligentes, hoje somos malvados? A Virtude não é, de forma alguma, sujeita aos acessos e aos intervalos da febre terçã – sentindo frio e calor, sendo ora saudável e ora doente. Todos os dias lhe são dias de saúde. Ela só tem bons dias e não reconhece nunca os maus dias.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 354-356.

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