sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Terceira proposição - Capítulo IV

CAPÍTULO IV
De onde lhes vem, portanto, essa graça que nos agrada tanto e que nos atrai tão poderosamente? Que faz com que cresça em nós essa estima que por elas temos? Certamente que é por causa de nosso capricho, por puro efeito do erro onde estamos de tomá-las por aquilo que não são. Nisso, somos como o amante de Juno [na mitologia, Juno é a esposa de Júpiter; ndt], tal como é representado nas fábulas: aquilo que abraçamos como sendo um corpo só tem a aparência de tal, é uma sombra pintada e colorida, é um nada que só é aquilo que fazemos ser, e que só tem a existência que nossa Opinião lhe empresta. Ela marca todas as coisas com caráter movente; ela não deixa nenhuma impressão firme; todas as suas imagens são inconstantes; assim, a figura do mundo passa, porque ela só é aquilo que nos parece ser. E ele passa com sua figura, da mesma maneira que a água que corre sobre uma pegada é retida nela apenas pelo tempo em que ela ali se mantém, mas se perde tão logo a água consegue passar. Nós fazemos os bens e os males apenas pela nossa Opinião; eles só são o que são na medida em que nós assim os imaginamos; e a partir do momento em que não os cremos mais como tais, eles cessam de o ser. Por uma deliberação de nosso espírito e por um conselho tomado de nós mesmos, concedemos magníficos títulos a coisas muito pequenas. Frequentemente, julgamos maravilhoso aquilo que não é nada; somos parecidos com os jogadores que, substituindo o dinheiro que não têm por folhas de papel sem valor, as fazem valer muito mais do que o que realmente valem; abusamos muito voluntariamente, tomando por um bem ou por um mal aquilo que não o é; e nosso abuso procede do fato de nos deixarmos governar pela Opinião. É consenso universal de todos aqueles que usam a palavra que se entenda por Leão um animal extremamente corajoso; e que a palavra que designe aquele que tem uma vantagem nobre como é a razão seja chamado homem, a quem foi dado o império sobre todos os outros animais [no original latino, Nieremberg escreveu: "Placitum humanum fuit, hanc vocem, leo, fortissimum animal; istam, homo, sapientissimum notare"; o que seria melhor e mais simplesmente traduzido assim: "Foi consenso entre os homens que esta palavra, Leão, fosse um fortíssimo animal, e esta outra, Homem, significasse um animal sapientíssimo"; de fato, a construção utilizada por Louys Videl tornou o texto muito hermético e de difícil tradução. Seja como for, optamos por manter, como vimos fazendo, a mesma construção sugerida pelo tradutor para a língua francesa; ndt]. Ora, assim como os nomes são vagos e indiferentes por sua própria natureza, assim como eles só se podem determinar por aquilo que agrada à fantasia [é importante que se esclareça que todas as vezes que aparece a palavra fantasia, Nieremberg a está utilizando referindo-se à potência da alma sensitiva de nome Imaginativa ou Fantasia. No ser humano, são essas as potências da alma sensitiva: os sentidos externos (visão, audição, olfato, tato e paladar), os sentidos internos (senso comum, fantasia ou imaginativa, memória e cogitativa) e o movimento; ndt], da mesma maneira poder-se-ia chamar de Leão uma Lebre covarde e temerosa; ou chamar de homem o mais estúpido de todos os animais. Temos uma semelhante liberdade no dar nomes especiais para as coisas do mundo; e, por um consentimento universal, mas perverso, atribuímos mérito e grandeza àquelas coisas que só o são segundo a nossa estima e que, no entanto, consideradas em si mesmas, são frequentemente as mais abjetas e as mais vis. Esta desordem foi introduzida pelos mais malvados dos homens, pelos ambiciosos e pelos avaros. Foi culpa de sua invenção que se tenha valorizado as grandezas e as riquezas, que se lhes tenha imposto nomes gloriosos; e que não apenas fez com que passassem como bens, como também que fossem capazes de estabelecer soberanamente a felicidade. Disso é que nasceu este deplorável abuso de levar mais em consideração as honras do que os méritos; estimar mais o ouro do que o ferro; preferir a coisa menos útil do mundo àquela que a experiência verifica como sendo a mais necessária. Ainda mais: como isso foi feito de comum acordo com todos os homens, poderia acontecer, da mesma maneira, que todos eles mudassem de Opinião e tomassem uma via de sentimento contrária. Os Lacedemônios, entre os quais todos os outros povos estavam como que apenas na escola da Sabedoria, condenaram o Ouro publicamente, estimando que não servisse para nada. Para certos povos da Etiópia, o Ouro servia apenas para fazer correntes que prendiam criminosos e cativos. Eles preferiram, sem dúvida, que o Ouro prendesse o corpo, mais do que prendesse o espírito; eles preferiram ser Mestres do Ouro e criar leis para ele do que recebê-las dele. Certamente, fomos muito maltratados por aqueles que, por primeiro, estimaram as coisas; e podemos seguramente dizer que eles tiveram pouco cuidado quanto ao que concerne ao nosso repouso e foram muito invejosos de nossa alegria, a ponto de fazê-la depender daquelas coisas que são difíceis de adquirir, que só conseguimos obter desconfortavelmente, e que são raras e difíceis. Não apenas eles parecem ter querido nos impedir todos os caminhos para a felicidade, como também temos motivos para acreditar que eles quiseram o sofrimento necessário e frequentemente inútil que se tem na tentativa de ser feliz tornasse a maior parte dos caminhos miseráveis. Nisso, não nos lamentaremos nunca o suficiente, seja de sua ignorância, que de sua malícia. Porque, se estivesse em nosso poder estimar as coisas como devem ser, teríamos estabelecido a felicidade naquelas coisas que estão à nossa inteira disposição e que temos à mão; eles, por sua vez, a fizeram consistir naquelas coisas que a Natureza afastou de nós, e que ela nos escondeu. Eles negligenciaram as coisas que, nos sendo presentes e familiares, podem facilmente nos tornar felizes; e, ao invés de fazer nascer a felicidade em nós, eles quiseram que ela viesse de outro lugar, eles a fizeram nascer em terra estrangeira. Ela poderia ser nossa por nada; e eles fizeram com que nós a comprássemos a um alto custo. Que loucura foi termo encerrado a felicidade na posse do Ouro! Relegando-a às entranhas da terra; indo buscá-la nos abismos até chegar às portas do Inferno! Como é possível que, da terra da miséria, nos venha a felicidade?

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 399-403.

Nenhum comentário:

Postar um comentário