CAPÍTULO V
Eis como, pelo benefício do costume, as coisas duras e difíceis se tornam não apenas fáceis como também agradáveis. Certamente, ele [o costume; ndt] nos é bastante útil e nos traz muitos bens; e nós lhe somos injustos e o estimamos muito menos do que deveríamos se não o estimarmos como um de nossos maiores bens e não o colocarmos entre nossas mais marcantes vantagens. Reconheçamos aqui a singular e rara obrigação que temos com a providência e com os cuidados da Natureza. Se aconteceu de ela nos formar pouco felizmente e de não cumprir em nós seu perpétuo desígnio de tornar perfeitas todas as suas obras; se contra a sua intenção, ela deixou defeitos em nosso corpo ou em nosso espírito; ela se valeu de um excelente meio para os reparar. Ela nos deu o costume, que pode muito bem ser nomeado uma Natureza voluntária e artificial, pela qual está absolutamente em nosso poder nos suprir daquilo que nos falta, nos refazer e nos formar outra vez. Poderia ela nos ter obrigado mais e ser mais liberal para conosco? Como uma boa mãe dá mais de uma roupa para seu filho para que ele tenha meios de se trocar, segundo cada estação e ocorrência; também ela não quis nos sujeitar a uma única natureza e nos ofereceu meio de nos modificarmos. Assim, se não somos virtuosos, ela agiu de tal forma conosco que só depende de nós nos tornarmos; assumir bons hábitos da mesma forma que pegamos uma roupa; desfazermo-nos dos vícios da mesma forma que tiramos uma roupa. É isso que fazemos com a ajuda do costume, cuja força não é pequena para nos fazer abraçar o bem e largar o mal; que, para dizer em poucas palavras, é capaz de produzir a maior de todas as mudanças; e, si não é fazer de um animal um homem, pelo menos não é fazer de um homem um animal. Temos de uma testemunha segura o relato de um rapaz da Sardenha que, tendo fugido de seus pais, foi para a selva [o texto latino é como segue: “Sardensis quidam, quemadmodum narrat Aben-Ezra, elapsus à parentibus, in sylvas se recepti...”. A “testemunha segura” a que se refere o tradutor é, portanto, o rabino Abraham ben Meir ibn Ezra, também conhecido como Abenezra (1092-1167), que foi um intelectual judeu e importante escritor da Idade Média, que se dedicou muito particularmente à astronomia, tendo, inclusive, dado o seu nome a uma cratera lunar; ndt]; aprendeu a maneira de viver dos animais selvagens, comendo ervas como eles, andando sobre as mãos e os pés; numa palavra, não tendo outro alimento ou forma de agir diferente da deles. Pouco tempo depois disso, um grande Senhor dessa Ilha, tendo ido caçar e o encontrado numa das armadilhas que havia deixado para pegar Cervos, o devolveu à sua família; e eles se dedicaram inutilmente para obrigá-lo a falar e lhe apresentaram em vão carnes próprias para o homem. Seja lá o que fizessem, ele permanecia mudo e só comia ervas; e tendo lhes escapado mais uma vez, ele voltou para onde estava antes; eis como é poderoso o costume, de forma que torna não somente fáceis as coisas que, por si mesmas, não o são, mas também as torna necessárias e forçadas. Será que iremos nos maravilhar, depois disso, com o fato de que ele supera a Natureza, na medida em que vence a Razão e produz um efeito tão estranho, que é o de perverter a humanidade e fazê-la ser o seu contrário? Experimentamos, todos os dias, a violência que faz em nosso espírito uma vontade confirmada pelo tempo, e com que rapidez somos levados àquilo que queremos por muito tempo. Um uso antigo, assim, adquire a força e a autoridade de uma Lei; e não obriga menos do que as constituições estabelecidas pelo comum consentimento dos povos. Assim como as coisas que são dos outros se tornam nossas por uma prescrição legítima, tornamos a Virtude algo nosso através do costume; adquirimos, dessa forma, o direito e a posse [sobre a Virtude; ndt]. Deixemos, pelo menos algumas vezes, que Deus tome posse de nós dessa maneira; e se não somos seus por nosso consentimento, que, pelo menos, sejamos pelo título que ele adquirirá através do longo uso.
NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 360-362.
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