domingo, 21 de novembro de 2010

Primeira proposição - Capítulo III

CAPÍTULO III
A pobreza toda rasgada e em trajes tão infelizes a ponto de causar medo  aos homens, vem nos acolher? Pratiquemos esta arte tão salutar, que acabamos de recomendar que seja bem empregada, conforme esta verdade: Só é pobre aquele que não sabe se contentar com pouco e que sabe ser pobre. Uma tão feliz reflexão, e que talvez nunca nos tenha vindo ao pensamento, nos assegurará, sem dúvida, e nos arrancará todo o temor que poderia nos apanhar de início. Mas acrescentemos  ainda que a Pobreza nos importuna e nos pesa, que temos uma dificuldade enorme para suportá-la, mas lembremo-nos de que a Razão nos ensina também que não podemos ficar sobrecarregados de algo vazio e sem carga de nada, que cria tão pouco embaraço, que é tão leve, visto que ela não usa nem mesmo roupas. E, além do mais, quanta aparência pode haver no fato de querermos nos aliviar através do ouro, que é o mais pesado de todos os metais? Aliviarmo-nos de um fardo para carregar outro ainda mais pesado e incômodo? Ela [a Pobreza; ndt] não pesa nada, com efeito; cansamo-nos de fantasiar e, pior ainda, acabamos deixando-nos levar pela opinião. A Pobreza é como um homem de guerra que, indo se alojar numa casa, assusta seu anfitrião à primeira vista; mas depois, quando tira e se desveste de tudo aquilo que o tornava terrível, se torna familiar e alguém de seu costume. Ela [a Pobreza; ndt] nos assusta verdadeiramente no início; mas tão logo ela permanece um pouco em nossa casa, tão logo nos acostumamos com ela, e consideramos as vantagens que ela nos oferece, ela se torna agradável e cara; e não é sem nos lamentarmos que nos resolvemos a deixar sua companhia. Será que estamos pressionados pelo desejo de ser felizes? Mas, o que costumo escutar é esse tipo de felicidade que não nos deixa felizes de fato, e que é puramente obra da Fortuna. Tão logo a conquistamos acusamos de injustiça o nosso amor próprio, por nos ter feito desejar uma prosperidade infeliz e nos fazer buscá-la ao preço de nossa salvação. Escutemos a Razão, fortalecida pela experiência, que nos diz que a má sorte vem, ordinariamente, depois da boa, e é uma sequência infalível dessa última. Não nos parece extraordinário e raro que um cego guie outro? E não seremos nós também muito ridículos ao depositarmos nossa fé neste cego, e não temer, seguindo-o, nos perder ou cair num precipício? A Fortuna vendo que ela [a Pobreza; ndt] é incapaz de fazer o mal a um Pobre, e vendo que ele está sempre protegido de suas injúrias por causa do privilégio de sua condição, tem essa perigosa fineza de lisonjeá-lo e lhe dar grandes bens para que, dessa forma, ele deixe entrar a miséria que os acompanha, e fazê-lo cair nas emboscadas de onde será impossível retirá-lo. Por que nós nos ligamos tanto ao amor aos bens, se a partir do momento em que nos ligamos a eles, nós nos separamos da Virtude, nos abandonamos ao vício, e nos tornamos malvados? Que isso nos faça lembrar que o avaro não é bom para ninguém, nem mesmo para si mesmo. Foi-nos recusada alguma honra? Fomos decepcionados em nossas pretensões e esperanças? Lembremo-nos, o mais cedo possível, que se não temos aquilo que desejamos, temos aquilo que não deveríamos desejar. Ao invés de ficarmos chateados com aquele que reprimiu nossa ambição, deveríamos ficar-lhe gratos; certamente, temos muita obrigação para com ele, visto que ele, quando faz isso, age da forma que somos obrigados a agir conosco mesmos. Temos que ser bastante contidos, temos que ter bastante poder sobre nós, para que não peçamos nada à Fortuna, e que só lhe peçamos que não nos dê nada. Só isso podemos obter de nós mesmos; porque todo o resto ela consegue com seus movimentos, com seu ofício. Não será isso motivo suficiente para nos sabermos injustos quando lamentamos? Será que pretendemos repousar realizando nossos desejos? Quando fazemos isso, tomamos um caminho totalmente contrário, que nos levará, mais à frente, a problemas. Não sabemos que a cobiça é uma inimiga com a qual nunca há paz ou trégua? Não sabemos que a única maneira para acalmá-la não é com a posse, mas com a recusa? Aqueles que foram perfeitamente instruídos e que rejeitaram aquilo que desejamos, sabiam que há incomparavelmente mais ganho no não querer aquilo que temos do que em obter aquilo que desejamos; que não há menos inquietude e pena em possuir as coisas do que em buscá-las. Aproveitemos esta instrução e o exemplo desses; entendamos que é isso que é ser feliz – não ter obrigação nenhuma com a Fortuna, visto que suas liberalidades nos arruínam – e essa é a maior glória e a maior segurança: ser mal com ela, mais do que agir bem com ela, e saber que suas perseguições são mais vantajosas do que seus favores. Estabeleçamos toda a nossa alegria  não apenas em não ter coisas que dependam dela, mas em não as desejar. O que quer que o mundo diga, não há felicidade maior do que esta; é nisso que, verdadeiramente, consiste aquilo que o mundo chama de boa Fortuna.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 380-383.

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