quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Sexto meio - Capítulo II

CAPÍTULO II
Não existe nada que mereça ser comparado a ela; mas por mais que usemos elogios para encantar a Vontade e atraí-la poderosamente à sua procura, ela resiste a eles tão forte e naturalmente, com tanta repugnância, que é preciso que ela seja violentada para que conseguimos abraçá-la. Foi isso que forneceu matéria para que alguém dissesse, a propósito, que a mais difícil de todas as Artes é aquela que nos ensina a atingir a felicidade [no original latino, Nieremberg escreve, logo na primeira linha do capítulo (e não nesse ponto em que o tradutor anota a citação): "Non imperite Musonius, omnium difficillimam artem felicitatis dixit, difficiliorem medicina, musica, & mechanicis". Trata-se, ao que tudo indica, de Caio Musônio Rufo (c. 30 - c. 100), filósofo neo-estóico, romano que, juntamente com Epíteto, Marco Aurélio e Sêneca, representa um dos expoentes mais significativos dessa escola de pensamento; ndt]. As outras nos custam menos para aprender, visto que a inclinação que nos leva a elas e a eleição que delas fazemos, aliviando a pena que nos causam ordinariamente seus começos, fazem com que as achemos mais fáceis e, de alguma forma, é como se quase lhes tirasse os espinhos. Mas, aqui, bem longe certamente de termos esta ajuda que vem da Natureza; bem longe de, nisso, sermos assistidos por esta feliz disposição que faz com que tudo seja reduzido à metade, o Operário é, não somente, inimigo de sua Arte, como também de si mesmo; ele combate a si mesmo; o costume que ele tem com o vício se opõe a tudo aquilo que ele cria em si de desígnio para abraçar a Virtude. Seus maus hábitos lhe cruzam o caminho e se colocam como impedimento. Numa palavra, ele encontra em si todos os obstáculos que os outros artesãos encontram nos materiais a que eles se dedicam. É preciso que ele arranque de seu coração suas paixões; que ele faça, para isso, um esforço semelhante àquele de arrancar um velho carvalho com todas as suas raízes; e sem parar diante dos sentimentos da Filosofia vulgar, que é muito indulgente quanto a isso, é preciso que ele as arranque de uma só vez. Assim como a febre que se acende em nossos intestinos não conseguiria se apagar em um instante, mas apenas com uma qualidade contrária e infinitamente mais forte do que aquela que ela deve combater, é preciso também uma extrema força para vencer nossas paixões; e tanto mais porque são poderosos e numerosos inimigos que nos atacam em grupo e em um só momento, e porque, delas, não poderíamos esperar nem paz nem trégua. Com isso, temos esta notável desvantagem: sendo que a metade de nós está sob seu controle [das paixões; ndt] e que elas se fortalecem com as inteligências que encontram em nós, o que nos resta é muito frágil para as destruir; se não fizermos um esforço extraordinário. Seria necessário, certamente, que fossemos prodigiosamente valentes ou maravilhosamente temerários para aceitarmos um desafio nessas condições – servindo-nos apenas de um braço, somente por um milagre conseguiríamos vencer nosso adversário. Temos apenas um braço livre quando entramos numa contenda contra nossas paixões. Cada uma dela, particularmente, é capaz de nos vencer. O que pensamos que elas conseguiriam juntas? Para evitar, portanto, este inconveniente e conquistar uma inteira vitória sobre elas, é preciso que aquilo que nos falta de força seja suprido pelo valor extremo.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 337-339.

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