CAPÍTULO V
Essa falsa e perigosa estima pelas coisas, até ao presente momento, nos causou bastantes males; ela nos foi muito malvada. Até ao presente momento, fomos enganados a respeito do seu preço e o fomos por nossa livre e espontânea vontade, por consentimento nosso. É preciso, daqui em diante, nos corrigirmos de um erro tão perigoso; revogar o tratado que temos com a Opinião, considerando-o muito injusto e com muita desvantagem para nós; livramo-nos de sua tirania e assumir sentimentos mais razoáveis do que aqueles que ela têm para conosco. Através disso, nos tornaremos felizes mesmo em meio à miséria; faremos experiência da Verdade das palavras de um Antigo [no original latino, não há menção ao autor; ndt] para quem, a pessoa que não falta com a prudência, não falta com a felicidade [a citação que, no original latino, aparecem em grego é traduzida para o latim assim: "Si bene prudens sis, omnibus fortunatus eris"; que pode ser traduzido por "se fores prudente, serás totalmente feliz"; ndt]. O quê? Pensamos que seria extremamente difícil mudar os sentimentos humanos; e que haveria mais temeridade que razão nesse empreendimento? Para não mentir em nada, é absolutamente impossível; mas, se não há como chegar à meta, a partir do consentimento dos povos, só nos resta procurar o nosso [consentimento; ndt]; e não podendo produzir este bem geral, resta que, pelo menos, o produzamos para nós, em particular. Há esta diferença entre as palavras e os pensamentos: as primeiras, tendo uma significação determinada, por um comum acordo entre todos os homens, não somos capazes de mudar, a não ser que seja por uma deliberação comum; mas podemos mudar os pensamentos e, sem dúvida, muito mais facilmente, visto que eles dependem puramente de nós e visto que, para isso, não precisamos do sufrágio de ninguém. Os nomes foram dados às coisas para que sejamos compreendidos quando falamos uns com os outros. Ora, não seríamos compreendidos se seu significado fosse diferente para cada um e se eles não tivessem o mesmo sentido. Mas, como falamos conosco mesmo através de nossos pensamentos, nós lhes podemos dar a inteligência que melhor nos parecer, e não haverá sentido ou interpretação que eles recebam que não esteja de acordo conosco mesmos. Mas, seria bastante bizarro, para não dizer extravagante, querer tornar um sentido particular, que é contrário àquele de todos os povos, um sentido geral, ou querer destruir as Opiniões autorizadas pela multidão e fortalecidas pela reverência que a duração dá às coisas. Certamente, seríamos muito pouco razoáveis se parássemos sobre tão vãs considerações; e é bastante suficiente que o respeito da multidão tenha adquirido Veneração frente à mentira, sem que com isso ele o torne santo e inviolável. Aprendamos que a Verdade não é, de forma alguma, ultrapassada pela quantidade; que ela não se enfraquece com o tempo; e que, mesmo sendo só e abandonada, ela não é, porém, sem sua força e sua dignidade. Sentimo-nos mal por deixar o erro é porque o vemos tão universalmente seguido? E sentimos tantos escrúpulos em nos desenganar porque vemos que todo mundo se engana? Eu nunca ouvi dizer que um precipício seja menos perigoso só porque muita gente tenha caído nele. É uma extrema loucura imaginar que um abismo é seguro por causa da quantidade de pessoas que nele pereceram; uma chaga onde muitas mãos enfiam ferros se torna mais profunda e, consequentemente, mais mortal. Se se nos apresentassem um pedaço de carne que soubéssemos estar envenenado, quereríamos comê-lo por mais delicioso que parecesse antes e por mais sermões que lhe pregássemos para que ele se fizesse bom e saudável? Quer dizer, não temos que ter como exemplo o erro dos outros, mas temos que ter horror ao erro; é preciso que eles se nos sejam propostos para que fujamos deles, e não para segui-los. Será que eles parecem poder servir de regra, se não podem nem mesmo servir de desculpa? E se não podemos sequer pretender tê-los, na medida em que nós mesmos já erramos tanto? Será necessário que negligenciemos nossa salvação, baseados nesse mau fundamento, segundo o qual vemos a maior parte dos homens correr cegamente em direção à própria perda? Será preciso que nos afastemos tanto do bem porque eles se comportam tão mal? Do que nos serviria, eu vos pergunto, o grande número e a multidão de pecadores no último dia, se todos seremos julgados um a um, e se será apenas o nosso mérito que nos deverá justificar, e não a quantidade ou a multidão? Renunciemos, portanto, a estas Opiniões igualmente falsas e perniciosas; e não nos obstinando mais no erro, aprendamos que vale mais se salvar com poucos, do que se perder com muitos. Que os exemplos quase infinitos daqueles que caem no pecado não nos seduzam, não nos movam a pecar; e cessemos de nos gabar desta má persuasão, segundo a qual as faltas dos outros podem servir de desculpa para as nossas.
NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 403-406.
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