quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Reflexões - Capítulo III

CAPÍTULO TERCEIRO
Seremos, por isso, imputados de fingimento? Seremos acusados de aconselhar a dissimulação? Que razão poderão ter para se persuadir disso? O nosso sentimento é apenas o de nos afligirmos com os aflitos. Se permitimos ao Sábio misturar suas lágrimas às dos aflitos, por que não quereríamos que as pessoas procedam da mesma forma? Eles choram suas misérias e nós deveríamos deplorá-los por isso? A fragilidade humana, e não os rigores da Fortuna, deve ser o tema de nossa dor. Um Filósofo, daqueles que a Grécia reverenciou como o exemplo e o Oráculo da soberana sabedoria [no original latino, o autor se refere a Sólon: "Lacrymantem Solonem reprehendit quidam, quod defleret, cum luctus non sit fortunae potio, nihilque prodessent lacryme". Sólon (683 a.C. - 558 a.C.) foi um legislador, jurista e poeta grego. Foi considerado um dos sete sábios da Grécia antiga; ndt], tendo sido perguntado dos motivos de seu choro, visto que não era possível ignorá-lo, porque não há remédio mais fraco para nossos males do que ignorá-los, disse que chorava por aquilo que é inútil chorar. Com isso, ele derramou lágrimas como as dos miseráveis, mas a causa de suas lágrimas foram bem diferentes da causa das lágrimas dos miseráveis: ele as derramou de desprazer por ver como eles as derramavam em vão. Por isso, é somente esse o tipo de lágrimas que um Sábio pode chorar. Quando alguém se abandona a um violento mal, nós devemos compartilhar com ele esse mal apenas para aliviá-lo de suas consequências. Mas, protejamo-nos de acreditar que sua dor nasce de um motivo legítimo, e de que aquilo que está fora de nós seja capaz, de verdade, de nos afligir. Será mais razoável nos persuadirmos de que o motivo de seu choro não é uma tristeza, mas um efeito de sua opinião, mantendo-nos certos de que ele só está triste porque ele se imagina assim. Seu maior mal será não poder sofrer constantemente, ou seja, seu único mal é não acreditar que não tem mal algum. Dissimular assim a nossa constância não é fantasiar o nosso sentimento, não é uma traição. Tanto é verdade que não devemos colocar nisso nosso pensamento e nosso desígnio, que, pelo contrário, mantemos como uma máxima indubitável, que é necessário ser sensível aos males dos outros, e que nos deve ser permitido, nisso, relaxar os rigores com os quais nos separamos do vulgo. Com isso, não pretendemos  outra coisa senão que a tranquilidade de nosso espírito não seja incomodada, e que essa pequena tempestade que se excita diante de nossos olhos não siga adiante dentro de nós e interrompa por pouco que seja a calma interior de nossa alma. Não nos tornaremos nem tristes nem infelizes, quando fingimos sê-lo. Nossa dor estará toda nas aparências, ela não passará disso. E faremos experiência dessa verdade pronunciada por um grande homem, que as lágrimas das pessoas de bem são a sua alegria [no original latino, Nieremberg anota: "Non est turbidus, non anxius, non miser, imo felix, id est, sui erit, & sibi hilaritate arcana festivus, Egregie divinus Ioannes Scholasticus, fletum proborum dixit animae risum". Trata-se, portanto, de João III, o Escolástico, que foi patriarca de Constatinopla entre 565 e 577; ndt].

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 189-190.

Reflexões - Capítulo II

CAPÍTULO SEGUNDO
A habilidade com a qual ele trabalhará para aliviar um aflito  imitará a que pratica o médico junto a um doente para quem a violência de sua dor torna incapaz os conselhos para sua cura; ele [o doente; ndt] se queixará dela a fim de aliviá-la e a adulará para vencê-la. Esse artifício legítimo é tão próprio do Sábio que, tendo uma excelente constituição de espírito, e estando perfeitamente confirmado na virtude, como o é, pode se misturar, com segurança, aos enfermos, pode entrar em seus sentimentos e descer até a mais baixa de suas misérias sem correr o risco de ser afetado por nada. Para salvar um homem que se afoga, é preciso ir até a ele; e só conseguiremos salvá-lo se resistirmos à impetuosidade da torrente que o carrega. Podemos nos abaixar para levantar aqueles que a Fortuna derrubou; mas, para não cair com eles, é preciso que nos mantenhamos firmes e cuidemos de não nos deixar levar por seus movimentos. Não há remédio mais salutar para um aflito do que persuadi-lo de que partilhamos com ele de sua dor; e para trabalhar de forma útil no sentido da cura desse tipo de mal, o médico deve fingir ter sido afetado pelo mesmo mal; do contrário, o doente suspeitará do médico; o médico o fará desconfiar e tudo aquilo que ele apresentar ao doente será visto muito mais como um veneno do que um remédio. Assim, por duas contrariedades que devem estar necessariamente de acordo, aquele que está enfermo não quer acreditar naquele que lhe traz um bem; e aquele que está doente não seria capaz de ajudar a outro. É preciso, portanto, que ele esteja são, com efeito, mesmo que aparentemente ele não esteja; porque como é que sofrendo ele seria capaz de trazer alívio para outros? Do meio de uma tropa de pessoas a cavalo que, um dia, parou para considerar o voo de um pássaro, segundo a antiga superstição das predições, uma pessoa atirou uma flecha e abateu um pássaro, troçando, em seguida, de seus companheiros de terem consultado um Oráculo que, bem longe de lhes ensinar o que deveriam fazer, ignorava ele mesmo aquilo que lhe aconteceria. Empregaremos esse mesmo exemplo para confirmar essa verdade, de que é preciso que cuidemos, primeiramente, de nós mesmos, antes de pretender salvar os outros; e que tenhamos a saúde que pretendermos oferecer; mesmo que para chegar a ela seja necessário parecer não a ter; visto que é certo que sem se molhar não é possível tirar alguém de um naufrágio.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 187-189.

Reflexões - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO PRIMEIRO
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REFLEXÕES
SOBRE a Máxima precedente

CAPÍTULO PRIMEIRO
No entanto, como a Fortuna se crê muito fraca para conseguir abalar a nossa firmeza, ela emprega nisso um esforço a mais, e conta ainda com socorro e ajuda para aquilo que ela não consegue sozinha. De fato, teremos muito menos trabalho se o combate acontecer em nossa casa, do que teríamos se fosse em outras casas. Nossos males não serão mais tema para exercitarmos nossa constância do que os males das pessoas que nos são mais caras. A experiência ordinária ensina que, depois de ter se defendido contra nossas próprias calamidades, ela [a Fortuna; ndt] se rende à compaixão que temos pelas calamidades dos outros. É sobretudo isso que há de excelente na vida do sábio, que sendo de extrema utilidade para todos não se aplica a uma vida escondida, mas ele se faz servo de muitos e comunica a todos as vantagens que tem, fazendo-se um tutor público que se vale de sua sabedoria. E como sua vida é uma perpétua matéria usada para a manutenção da vida da Fortuna, eles [os sábios; ndt] subsistem muito mais por seu apoio do que por suas próprias forças. Portanto, é preciso considerar seriamente a maneira como ele se deve conduzir nessa importante ocasião; além de verificar se, sem violar a dignidade de sua virtude, ele pode testemunhar abertamente que o infortúnio de outra pessoa lhe toca. Esta demonstração exterior lhe é verdadeiramente permitida; e ele pode, ao encontrar uma pessoa afligida, se manter firme sem tristeza; mas que ele tome muito cuidado para que aquilo que muda o seu gesto e o seu rosto não altere ou perturbe em nada a tranquilidade de seu espírito; ele pode aparecer com um rosto abatido, mas ele deve manter seu espírito firme. Em meio a lamentações e lágrimas, ele deve conservar sua alegria e se defender da tristeza com tanto mais cuidado quanto normalmente se tem para se proteger de um mal contagioso e mortal. E mesmo estando protegido de todas as expectativas da Fortuna, é preciso que ele lhe faça a guerra; mesmo que ele já a tenha vencido em sua casa, é preciso lutar para vencê-la em outros terrenos e levar para todos os cantos os sinais de sua vantagem sobre ela. Se ele achar que não é capaz de comunicá-los [os sinais de sua vantagem sobre a Fortuna; ndt] aos outros, que recorra pelo menos ao artifício de levar algum alívio a um infeliz derrubado pela dor, que, suspeitando de seu desígnio sobre ele, se intimida já no início e mal consegue sofrer sua [da Fortuna; ndt] presença, achando dura e má a consolação, antes mesmo que ele a tenha apresentado. Alguém disse [no original latino, Nieremberg afirma: "Tzetzes ait, benefaciens hominibus, undequaque demetens malitiam". Trata-se, portanto de João Tzetzes (1110-1180), poeta e gramático bizantino que viveu em Constantinopla; ndt] que, nesse encontro, um homem de bem é um fardo pesado. Quem é que concorda com isso, eu vos pergunto, se não é exatamente aquele que é tão miserável a ponto de não sentir sua própria miséria? Certamente é mais razoável dizer que aquele não seria uma sobrecarga cuja habilidade é tal a ponto de livrar um espírito daquilo que o incomoda, cujos cuidados o descarregam daquilo que lhe pesa e agem com o máximo de eficácia exatamente quando parecem ter o máximo de amargura. O golpe que elimina o sentimento é mais perigoso, sem dúvida, do que aquele que causa a dor. E se, de alguma maneira, coincide com diminuir nosso mal colocando-o a descoberto, dando-o ao nosso conhecimento, não seria então mais justo louvar bastante a virtude, de quem nos vem um tão bom ofício? E não devemos gritar: “Raro e soberano remédio contra enfermidades humanas, que é tão salutar mesmo para quem te acha aborrecido, que bens recebemos de tua assistência? Tu a dispensas a teus próprios inimigos, tu curas aquele que resiste a ti; tu não desdenhas te comunicares, pelas mãos de pessoas de bem, para os malvados, de quem o contágio nunca sujou tua pureza”. Em verdade, é a ela que é preciso aplicar aquilo que alguém disse de um bom Príncipe [no original latino, o autor parece se referir a São Venâncio Fortunato (c. 530 - 600/609), que foi poeta e compositor de hinos latinos, além de ter sido bispo de Poitiers; ndt], que ele sustentava os enfermos com seu poder, que ele os esclarecia com seus conselhos, e que ele recebia em suas mãos aqueles que haviam caído das mãos da Fortuna. Um Legislador entre os Judeus disse, ainda que com outro sentido, que o Sábio tem mãos pesadas [no original latino, Nieremberg anota: "Hinc aliter intelligo, quam Philo, quod Iudaerum Legislator ait, sapientem graves manus habere". Parece tratar-se, portanto, do filósofo Fílon de Alexandria (25 a.C. - c. 50), que viveu no período do helenismo e se dedicou a interpretar os textos do Antigo Testamento à luz de categorias da filosofia grega; ndt]. Não nos surpreendamos em nada com isso, visto que é assim que ele sustenta, carrega uma infinidade de pessoas, aquelas para quem falta o sentido e a condução, aquelas que pesam demais para si mesmas; aquelas que a Fortuna persegue; os aflitos, os miseráveis, os imprudentes.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 184-187.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Terceira máxima - Capítulo VII

CAPÍTULO SÉTIMO
Mas, se o nome que ela [a Fortuna; ndt] carrega nos desagrada e é odioso para nós, se julgamos indigno de nós depender tão servilmente de uma potência cega e injusta tal como ela nos é representada pelo Paganismo; tudo o que nos resta fazer é abandonar os termos do uso corrompido, levantar o véu com o qual a fábula cubriu a verdade e, então, descobriremos que aquilo que os homens comumente chamam Fortuna é, para bem dizer, nada mais nada menos do que a potência de Deus, a ordem eterna e soberana sob a qual Ele submeteu todas as coisas. Assim sendo, não teremos dificuldade de lhe render uma inteira obediência, e de receber agradavelmente, sem desgosto e sem repugnância, tudo aquilo que nos vier de sua parte. E, eu vos pergunto, por que deveríamos nos proteger? Se, como diz o vulgo, o trabalhador é mestre em sua casa e pode fazer, nela, aquilo que melhor lhe parecer. Deus é mestre no mundo, visto que essa é a sua casa, e no entanto tão frequentemente sofreu com nossas vontades desordenadas. Não seria o caso de, de vez em quando, nos submetermos às suas ordens que são tão justas? Ninguém nunca as recebeu com uma perfeita submissão ou ficou pronta a executá-las tanto quanto Abraão. Tendo recebido a ordem de Lhe sacrificar seu próprio filho, ele não hesitou em nada; ele Lhe ofereceu com a mesma alegria que ele o recebeu dEle; ele o teria degolado tão tranquilamente quanto já degolara um cordeiro; e não teve nenhum escrúpulo de parecer impiedoso por ser fiel. Não nos surpreendamos. Ele era tão firme no seu desígnio de agradar a Deus sobre todas as coisas; o zelo e a fé o possuiam de uma maneira tão forte e preenchiam de tal forma o seu espírito;  que não havia em si lugar para a dor; ele não foi capaz disso e podemos seguramente dizer que somente Deus percebeu isso, visto que foi Ele quem teve o cuidado de salvar aquilo que esse pai tão resoluto estava a ponto de perder, e que, para poupar uma vítima tão cara, sub-rogou ele mesmo uma outra. Assim, esse excelente servidor deixou seu amor e sua humanidade ceder a seu dever; e por um sacrifício novo que conferia ainda mais mérito à sua perfeita intenção no caso do primeiro [sacrifício; ndt] ele imolou todos as suas ternuras à sua obediência. Que isso nos ensine o quanto é necessário que sejamos obedientes a tudo o que Deus nos ordena, e com que respeito e com que submissão devemos receber tudo aquilo que Lhe agrada nos enviar. Consideremos o presente pela dignidade da mão que no-lo concedeu, e tenhamos como caras as coisas que vêm dEle pela simples razão que elas vêm dEle e que é Ele quem no-las dá. Pensemos que, do princípio de todos os bens, só pode vir o bem; que de Suas mãos só podem cair coisas excelentes e preciosas, visto que Suas mãos são cheias de jacintos, assim como fala o Sábio [refere-se a Salomão; ndt]. Por Suas mãos, a dor, a pobreza, a infâmia, perdem seu azedume e sua amargura; elas tornam o mal agradável para nós; elas conferem valor mesmo ao mal. Quem se lamentaria, eu vos pergunto, de ser bastonado por ouro? E quem não quereria que se lhe jogassem pérolas como se fosse pedregulhos? Seus bastões, semelhantes àqueles com os quais o agricultor bate a colheita, só caem sobre nós para o nosso bem; e Seu amor não deve apenas nos fazer suportar Seu rigor, mas deve ainda torná-lo caro a nós. Há glória no ser bastonado por tão ricas varas; um tão nobre suplício é menos uma aflição do que uma recompensa; é menos um estigma do que uma honra. Com a consolação, ele nos traz também alegria, e é por isso que o Sábio chama jacintos as pedras preciosas que estão nas mãos de Deus, por causa da soberana virtude que elas têm de fazer o coração gozar de alegria. Certamente, tudo o que há de mais insuportável na vida é capaz de nos agradar e nos encantar quando vem dEle. Nada Lhe é mais próprio e natural do que fazer o bem; podemos mesmo dizer que nisso se encontra Sua arte e Sua principal profissão, aquilo onde estão Suas mais poderosas inclinações e Seus mais fortes hábitos. Os grandes pintores tentar mostrar a perícia de seu pincel ao pintar um réptil estranho, ou um inseto hediondo, muito mais do que pintando uma figura qualquer ordinária e mais agradável. Deus gosta, também, de produzir Suas mais excelentes operações valendo-Se de temas tristes e doloridos; e é nisso que Sua bondade trabalha mais, ainda que não pareça. Assim como a beleza da arte consiste principalmente no se esconder, também os efeitos de Sua graça são maiores quando são mais secretos e não podem ser vistos de fora. Depois disso, será que poderemos duvidar que é mais agradável receber aflições do que a retribuição de Seu amor? Poderemos duvidar que é Sua bondade que nos envia as aflições e não a Sua cólera? Além do mais, cuidemos bem de não amar constantemente as coisas que não têm constância; lembremo-nos que temos que nos manter firmes nas mudanças da Fortuna e devemos mostrar o mesmo rosto a seus maus tratos e a seus favores.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 180-184.

Terceira máxima - Capítulo VI

CAPÍTULO SEXTO
Um espírito constante e resoluto deve, a partir de então, se instruir a só amar firmemente aquilo que tem firmeza. Seja lá o que lhe chegue da Fortuna, ele deve receber isso com bom humor, não recusando a amargura mais do que a doçura, e recolhendo com um mesmo rosto seus favores e suas desgraças. Agir dessa forma com ela sem dúvida a colocará em desordem; nós a deixaremos confusa e envergonhada, pela maneira tão contrária a seu pensamento e sua expectativa como será aquele com a qual receberemos agradavelmente aquilo que ela nos apresenta de desagradável. Estando certos de que a resistência que opomos a suas vontades é o único ou, pelo menos, o maior meio que ela tem de nos afligir. É apenas através disso que ela pode nos causar alguma aflição. E preciso dar a ela o testemunho de que tudo o que queremos é o que lhe agrada, que nós só queremos isso. Certamente ela é capaz de perceber nossa tentativa de iludi-la através desse artifício; de forma que ela criaria outros desígnios maldosos contra nós, tornando esse artifício inútil. Se há coisas que mais devemos recusar são, sobretudo, aquelas que o mundo estima – as honras, as riquezas, as volúpias – aquelas coisas que agradam de início e que se recomendam a nós por uma bela aparência. É preciso devolver essas coisas a ela, da mesma forma que jogamos de volta uma bomba que nos é lançada. Na medida em que brincarmos com aquilo que nos vier de sua parte, nunca seremos tristes, nunca seremos infelizes. Brinquemos, portanto, com ela, se não quisermos que ela brinque conosco. Rejeitemos corajosamente seus presentes, tanto os que brilham como os que não brilham. Assim, evitaremos o desprazer de ver que ela nos pede de volta, cheia de cólera, aquilo que nos deu; que ela nos acusa de os ter guardado por muito tempo e toma isso como pretexto para nos tratar mal. Esses bens ligeiros e que valem pouco devem ser considerados por nós como muito levianos e não devem ser amados de forma alguma, já que também é preciso devolver-lhes a ela [à Fortuna; ndt] ao menor sinal que ela manifeste de os querer retirar de nós, evitando que ela se nos arranque das mãos. Eis um meio raro e infalível de ultrapassar sua malícia: coloquemo-nos no lugar da Fortuna, façamos contra nós mesmos tudo aquilo que seu rigor pode fazer conosco. Assim, nós a tornaremos incapaz de nos fazer mal, destruiremos o desígnio que ela poderia ter de nos trazer perdição. Aristipo [há dois personagens na Grécia antiga com este nome, ambos pertencentes à chamada Escola Cirenaica. O primeiro Aristipo foi discípulo de Sócrates e, como este último, se interessou quase que exclusivamente pela ética, e defendia o controle racional sobre o prazer. O segundo Aristipo, é neto do primeiro, e é conhecido como Aristipo, o Jovem. Segundo Eusébio de Cesaréia, este último foi quem sistematizou o pensamento do avô na chamada Escola Cirenaica; ndt] prevendo que ela queria não apenas lhe tirar as coisas que ele mantinha – e que eram delas – mas querendo também tomar sua vida como uso seu, e vendo chegar seus extorsionários - ele chamava assim os Piratas -, tomou o cuidado de jogar no mar todo o seu ouro, fingindo que ele tinha caído por acaso. Assim, foi sua perícia e não o seu ouro que salvou sua vida. Assim, para se tornar mestre da Fortuna tudo o que é necessário é se prevenir contra ela. Que cada um diga por si mesmo, num encontro semelhante a esse, aquilo que, então, ele disse, que vale mais que Aristipo perca as coisas do que elas causem a perdição de Aristipo. Na contínua guerra entre o Porquinho da Índia e a Víbora a vantagem é, ordinariamente, de quem ataca primeiro. O mesmo deve acontecer no caso do homem com a Fortuna: o agressor é o vitorioso. Se nós lhe deixamos voluntariamente tudo aquilo de que ela nos pode roubar, ela não terá motivo para se ligar a nós, ela não terá nada a fazer conosco. Se nós não desejarmos em nada as coisas agradáveis e não rejeitarmos as desagradáveis, ficaremos protegidos de seus ultrajes, teremos encontrado o meio de arruinar todos os seus empreendimentos e todos os seus esforços.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 178-180.

Terceira máxima - Capítulo V

CAPÍTULO QUINTO
Sirvamo-nos de um meio infalível que temos para nos garantir do mal que ela nos pode fazer; vejamos suas mudanças como assistimos a uma comédia e não nos preocupemos com as considerações sobre o passado ou sobre o futuro. Coloquemos nela nossos olhos, sem ligar a ela a nossa afeição, e que nada dela nos toque além de suas ações presentes. Aqueles que se apresentam nos jogos públicos e no teatro se cansam e têm muito trabalho; e aqueles que, porém, os veem se divertem e sentem prazer. Se nos desfizermos de todo tipo de paixão e de interesse, consideraremos os olhos e os caprichos da fortuna [na tradução aparece com letra minúscula; ndt] e eles servirão para nosso divertimento, e nossa alegria não mudará em nada, a não ser na matéria. Vejamos as coisas passarem sem sermos tão descuidados a ponto de passar junto com elas. Consideremos sua fuga, sem fugir junto com elas. Tiremos de sua ruína e de sua perdição o prazer que sentimos na caça pela derrota e pela morte dos animais. Elas nos esgotam por dois meios: ou porque escapam de nós, ou porque, com efeito, perecem. Se for pelo primeiro motivo, que loucura é a nossa segui-las? Se for pelo outro, será que devemos estimá-las de tal forma a ponto de lhes conceder as honras, a lamentação e o luto que deveríamos sentir apenas por nossos pais? Gozemos muito mais da alegria de não perecermos com elas; e visto que não poderemos evitar perdê-las, seja pela morte delas que, por assim dizer, pela nossa morte, o que pensamos que pode haver de imortal em meio àquilo que possuímos? E se não possuímos a imortalidade, poderemos, eu vos pergunto, comunicá-la às coisas? Aquilo que pode acabar a qualquer momento não tem verdadeira existência, e podemos dizer muito razoavelmente que não existe mesmo quando existe. Mas, pressupomos que nossa duração seja eterna e que tão logo as coisas perecem deixam um sucessor – tão logo uma vai embora, outra toma o seu lugar. Ao invés de deixar nossa alegria morrer com a primeira, e encerrá-la junto em sua tumba, nós fazemos com que ela [nossa alegria; ndt] passe para uma nova coisa. Nós sequer nos damos o trabalho de verificar a sua condição e os seus defeitos, mas acreditamos naquilo que frequentemente se vê acontecer, que uma grande sucessão cai nas mãos de uma pessoa imperfeita, que ela [a sucessão; ndt] é concedida a um manco, a um surdo, a um cego. Usamos igualmente das coisas, chamando-as para tomar posse de nossa alegria. Não há nenhuma lei que prive um doente de uma herança que lhe diz respeito. Quando os bons dias de Jó passaram  e sua prosperidade morreu – para nos servir de exemplo –, o que aconteceu a ele, eu vos pergunto? Não somente a pobreza, mas a extrema miséria. Depois que a Fortuna  caiu sobre ele com todas as suas forças, que uma mesma ruína levou seus filhos e seus bens, que uma chaga universal cobriu seu corpo, ele se viu, para completar sua infelicidade, desprezado, ridicularizado por aqueles mesmos lhe deviam consolar e suportar; ele se tornou o refugo; ele foi o opróbrio do mundo; mas será que ele foi triste? Será que ele fez cara feia? Ele não perdeu nada de sua alegria, ele a manteve inteira diante de todos os presentes. O grande santo Zenão [trata-se de Zenão de Verona (c. 300 – c. 380), foi bispo de Verona e é venerado como confessor. Foi martirizado por volta do ano 380; ndt], encontrando-se acolhido por uma repentina e violenta desgraça, não acreditou que, com isso, havia perdido sua felicidade; ele apenas acreditou que ela havia mudado de matéria. Imitando esses Heróis, não coloquemos nada de nosso amor e de nossa alegria nas coisas que passam, mas transportemo-la de uma a outra; não nos liguemos em nada à Fortuna, mas giremos, como ela gira, da mesma forma que essa flor que segue o movimento do Sol. Lembremo-nos de que alguém assim pode, verdadeiramente, ser chamado de mestre, visto que a segue [à Fortuna; ndt] sem esperança, que se acomoda a seus movimentos sem se deixar levar por eles.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 175-178.

Terceira máxima - Capítulo IV

CAPÍTULO QUARTO
Portanto, pode se encontrar fora de nós qualquer coisa capaz de nos agradar inocentemente e nos servir para nossa alegria. Mas a Fortuna, que muda sem cessar, que não tem sossego, e que, por assim dizer, é mesmo inconstante, só tem de constante a própria inconstância, e por isso não muda em nada. É isso que podemos, seguramente, amar nas coisas, não tanto nos ligando a elas, mas tendo algum tipo de comunicação com elas, a fim de nos instruir acerca da firmeza com a fragilidade delas e usar seu defeito em nosso proveito. Há diferença entre aquilo que se liga a uma roda e aquilo que simplesmente está perto de uma roda. Ela gira sobre lama e pedregulhos; mas ela não é capaz de carrega pedregulhos, que são sólidos e pesados, da mesma forma que ela carrega lama, que é mole e leve. Que isso seja, para nós, uma lição para aquilo que deveremos fazer nesse encontro, e nos ensine de que maneira devemos nos portar em relação à Fortuna. Podemos vê-la correndo, mas guardemo-nos de segui-la. É preciso considerar  seus movimentos, mas não se deixar levar por eles. Haveria, eu vos pergunto, algo de mais vil e mais digno de nosso desprezo do que o instrumento de sua inconstância? É uma roda que gira sempre sobre a terra e que, por essa razão, nunca está livre de sujeira. Além do mais, quem não sabia que ela serve também para impor uma forma infame e cruel de suplício? A violência com a qual ela exerce seu império nos dá motivo suficiente para nos surpreendermos. É como se fez de um sexo a quem a doçura é tão própria e natural. Não tenhamos escrúpulos de dizer que, não tendo qualidades louváveis, ela tem imperfeições, é extremamente desigual, pronta, colérica, terrível; mas com isso, frágil e impotente; sobretudo quando resistimos a ela vigorosamente e se lhe opõe uma coragem viril; porque, então, ela cede, ela se submete, ela se deixa ver realmente mulher; mais do que quando nós nos submetemos a ela, quando nos deixamos ligar à sua roda. Não devemos achar estranho que sintamos uma dor extrema, já que ela nos faz sofrer os mais rigorosos e mais insuportáveis de todos os tormentos.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 174-175.

Terceira máxima - Capítulo III

CAPÍTULO TERCEIRO
O sábio, querendo nos fazer ver, através de um exemplo ilustre e natural, como é certa a instabilidade das coisas, nos mostra como as peças que compõem o Universo estão num movimento perpétuo e giram sem cessar em seu círculo [no original latino, Nieremberg se refere ao livro de Eclesiastes: “Sapienter, mundi membra, monet sapientissimus Ecclesiastes, gyrare, & in circulos suos reverti, ut rerum inconstantiam summan, id est, constantem monstraret”; ndt]. Não é suficientemente claro para nós dizer que as coisas não têm nada de mais constante do que a própria inconstância, que elas mudam a todo momento e que elas não têm nada de firme? Desta máxima indubitável é preciso tirar este preceito salutar: apenas o que é permanente deve ser objeto de nosso amor. Consideremos um círculo que gira e veremos que tudo se move nele, exceto o centro e o próprio movimento, visto que, sendo [um movimento; ndt] circular, ele permanece sempre no mesmo espaço e não muda de lugar: assim, a terra em torno da qual giram tantos globos é imóvel e não se deixa levar por nada de sua [dos globos; ndt] agitação. Este ordinário e contínuo fluxo das coisas que, para poder dizer de forma mais ingênua, imaginamos como se fosse uma roda que está entre as mãos da Fortuna e que ela governa soberanamente, só tem um ponto no meio que está em eterno repouso. Se nos reduzirmos a este ponto, encontraremos uma tranquilidade perfeita que não pode ser encontrada em lugar algum; o movimento e os problemas não irão chegar até nós. E por mais que nos pareça estar num lugar muito pequeno, estaremos, na verdade, em um grande espaço, onde nos será permitida uma grande expansão. Será preciso nos explicar melhor para entender o que é esse ponto? É o espírito universal que conduz e governa esta soberana firmeza. Se não nos é possível chegar até a Ele, esforcemo-nos, pelo menos, de nos aproximarmos. As partes mais próximas do ponto são aquelas que se movem menos, como se fizessem um giro menor. E se elas nunca subissem para o alto da roda, se elas nunca descessem para o ponto de baixo, elas não correrão nunca o risco de tocar a terra. Vede, portanto, a vantagem que existe em se manter nessa mediocridade [mediocria, em latim, não tem exatamente o mesmo significado que a palavra mediocridade tem para nós, hoje. Trata-se de um conceito clássico: o do meio-termo, ou da indiferença, muito comum à segunda escolástica jesuítica; ndt]? Nisso há também honra e ninguém ignora que o meio seja um lugar de dignidade, visto que a virtude mesma se aloja ali. Mas, pelo contrário, que honra, que segurança poderemos pretender nas outras partes [da roda; ndt]? Nelas, a Fortuna perverte a ordem, colocando no alto o que deveria estar em baixo; ela gira a roda, ela nos expõe à infelicidade infalível de ficar esgotados pelo fardo ou de ser dilacerados por espinhos e pedregulhos. Depois do centro, a única coisa que há de firme é o movimento, porque, não tendo fora de si termo aonde possa chegar, ele se move todo em si mesmo e tão continuamente que nada o consegue parar ou impedir. Um círculo que gira foi o tema dessa demonstração; e como esta é a imagem mais natural da instabilidade das coisas do mundo, um grande espírito acreditou que não haveria forma melhor para representar isso, nomeando-o círculo onde nada mais há de firme e de seguro além do movimento mesmo [no original latino, Nieremberg escreve: “Argute hanc faciem rerum labentium, circulum dixit Helias Cretensis, quarum sola consistit inconstantia”. O “grande espírito” a que se refere Louys Videl é Helias Cretense, como era conhecido por seus contemporâneos o averroísta Elias Del Medigo (c. 1458 – c. 1493), que exerceu grande influência sobre a obra de Pico della Mirandola e de outros pensadores neo-platônicos e humanistas, no século XV; ndt].

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 171-173.

Terceira máxima - Capítulo II

CAPÍTULO SEGUNDO
Se alguém, encontrando-se levado pela impetuosidade de uma torrente, encontrasse uma árvore que lhe oferecesse segurança e, por assim dizer, lhe estendesse seus braços, não se prenderia a ela? Não se ligaria a ela firmemente? Somente a Deus podemos recorrer, para não perecer, no fluxo impetuoso das coisas do mundo e na violência com a qual elas nos carregam. Somente Deus pode nos garantir contra o naufrágio. Todo o resto, certamente, é movediço e frágil; e muito longe de ser capaz de nos reter, se deixa levar também muito facilmente. Considerai, eu vos peço, disse um grande Santo [trata-se de São Paulino de Nola; ndt], a velocidade com a qual os dias fogem de nós; não existe roda mais inesperada e que gire mais rapidamente. Vede com todas as partes do Universo diminuem, correm e perecem. Tudo o que imaginamos como bem para nós e que pensamos ter seguro em nossas mãos, nos escapa, passa sem retornar, e leva consigo nossos espíritos que se ligaram de forma tão infeliz a uma vã aparência, a uma sombra de bem. A condição das coisas humanas é parecida a um teatro, onde a face muda de repente por causa da diversidade dos personagens que aparecem; ela não é mais sólida e não tem mais firmeza do que essas imagens vãs que nosso espírito cria durante o sono. Assim, podemos muito bem nomeá-la [à condição humana; ndt] uma comédia, uma visão, um sonho; e se quisermos uma imagem ainda mais natural [para representar a condição humana; ndt] a encontraremos na contínua agitação do mar. Quem, vendo-se à mercê das ondas, ao descobrir uma Ilha ou um porto, não empreende todos os esforços possíveis para ali chegar? Saibamos que será infalível a nossa perda no mar do mundo se não seguirmos em direção a esse porto que vimos acima de nós, que é permanente e firme, que é eterno; ou seja, se não recorrermos a Deus. É nEle apenas que devem procurar a salvação aqueles que querem se salvar das ondas e das tempestades da Fortuna. Ele é a única coisa constante, é a raiz profunda de todas as coisas. Por mais forte que seja uma árvore, a violência dos ventos é capaz de arrancá-la do chão, carregar seus galhos, destruir seu tronco; apenas suas raízes são invioláveis, porque elas estão escondidas. Assim, tudo o que há no mundo é perecível, e apenas Deus não o é. Tudo o que amamos fora disso segue a condição de nossa natureza e, consequentemente, é enfermo e mortal como ela; e não seríamos capazes de evitar sua perda, se não todos os dias e horas, certamente uma vez e num momento. A mesma lei que nos submete à necessidade da tumba, submete todas as coisas que agarramos nessa vida: elas não são mais isentas do que nós mesmos. Mas, ao invés de nos esperar e de só ir [para a tumba; ndt] junto conosco, elas nos precedem e vão sem nós, advertindo-nos de nosso fim através do seu fim. Todavia, admiramos sua fragilidade e sua morte, por assim dizer, não nos lembrando que somos frágeis e mortais; surpreendemo-nos de sua fragilidade, não pensando em nenhum momento na nossa.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 169-171.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Terceira máxima - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO PRIMEIRO
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TERCEIRA MÁXIMA
QUE devemos amar as coisas constantes e aproveitar a mudança das que passam

CAPÍTULO PRIMEIRO
Mas, ainda que as únicas coisas que nos pertencem verdadeiramente devam ser o objeto de nosso amor, ainda que ele [nosso amor; ndt] só se ligue àquelas [coisas] que dependem da vontade e estão absolutamente dentro de nós, ainda assim, contudo, ele se dirige para fora de nós e sobre coisas que não estão em nossa jurisdição e pretendemos amar com segurança; às vezes até ele se permite confiar inteiramente nisso a alegria, porque elas são inocentes e não parecem apresentar motivo de apreensão de que possam causar desordem em nosso espírito. E mesmo que elas não estejam à nossa disposição, elas não nos devem ser, de forma alguma, suspeitadas de inconstantes e de infiéis. Não devemos ter escrúpulos no abrir-lhes nosso coração, porque elas são bastante firmes e seguras, porque elas tem menos chance de decair que nós mesmos. Todas as outras nos causam a perdição desde o momento em que as abraçamos; elas se tornam nossas inimigas tão logo se nos tornam caras; e como se a nossa afeição lhes comunicasse alguma maldade, elas nos fazem mal tão logo nós as amamos. Às vezes, mesmo aquelas que passam rapidamente e que parecem não ter nada que possa causar temor, são exatamente aquelas que não causam mais problemas; e o perigo é menor, para nós, no seu impedimento do que na sua fuga. Certamente a Fortuna não tem maneira mais perigosa de guerrear contra nós do que essa: ela só emprega coisas aparentemente frágeis e vis; mas é através dessas coisas que ela se torna mais digna de temor. Ela só tem por armas caniços frágeis e quebrados, mas ela conserta seu defeito pela habilidade com a qual se serve dessas armas; ela empresta sua maravilhosa destreza de maneiras a essas armas para suprir o que elas não têm de força. Ela combate como esses povos que, virando as coisas para o inimigo, lhe fazem mais mal do que se lhes mostrasse o rosto. Ela nos engana, disse o Abade Felipe [confira tag "Abade Felipe" ao lado; ndt], pela velocidade com a qual ela nos lança seus dardos. E para bem dizer, o amor que temos pelas coisas caducas e perecíveis aumenta e fortalece nossa miséria; e seguramente é desejar a ruína de nossa felicidade querer estabelecê-la sobre um fundamento tão arruinado. Sem dúvida, se nosso amor se liga a um objeto constante, ele segue sua condição e se tornará constante. Liguemo-la, pois, a Deus, em quem estamos certos de encontrar uma alegria eterna, com uma firmeza eterna. Não tenhámos escrúpulos de engajar todos o nosso coração em Deus, arrisquemos nEle nossa ousadia; encontraremos, sem qualquer risco de nossa parte, uma felicidade segura. Quem é que, tendo que guardar uma grande soma, não toma todos os cuidados necessários  para se garantir de qualquer perda? Ou não pediria um caução ou um empenho? Nosso amor é toda a riqueza de nosso espírito; tudo o que temos de valor e de preço é por causa dele. Ele constitui o fundamento e a medida de nossa estima. Vejamos, portanto, onde nos devemos guardá-lo, saibamos se ele pode encontrar firmeza nas coisas do mundo que ele abraça. Ele só encontrará essa firmeza em Deus. Portanto, coloquemo-lo somente nEle.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 167-169.

Segunda máxima - Capítulo III

CAPÍTULO TERCEIRO
Mas, se esse homem que acabamos de imaginar pudesse ser encontrado em algum lugar, se essa raridade original que acabamos de fantasiar existisse na natureza, quem, eu vos pergunto, ousaria pretender se comparar a ele? É suficiente estar no mais alto ponto da felicidade – que é ter atingido a satisfação, que é nada desejar e nada esperar –, ao invés de simplesmente ser feliz ou obter tudo o que se deseja. É nesse nível supremo que se costuma considerar que esteja a felicidade de Deus: Ele é soberanamente feliz, não tanto porque Ele tenha tudo o que possa desejar, mas porque Ele não deseja nada. Ele a possui muito acima da alegria comum dos homens, uma alegria que não se assemelha em nada com o possuir as coisas que Ele poderia ter desejado, mas de as possuir todas sem ter tido necessidade de as desejar. Sejamos escrupulosos, portanto, depois disso, na estima que fazemos daquele que quer conseguir o que espera – ele é bem menos feliz do que aquele que não espera nada. E se é possível fazer alguma distinção entre aqueles que chegaram a esta alta região da felicidade, que é ser capazes de ordenar sua vontade através de seu poder, será que não chegaríamos a dizer que aquele que só deseja o que pode tem uma vantagem notável sobre aquele que pode tudo o que deseja? Digamos, com isso, que por mais certa que seja a esperança, ela é tão pouco necessária para a verdadeira felicidade que mais atrapalha do que serve a esta última – ao invés de ajudar a crescer, ela ajuda a diminuir; ao invés de a estabelecer, ela causa sua ruína, porque ela depende dos caprichos da Fortuna, que muito frequentemente brinca com ela; finalmente, ela a destrói pela apreensão do mal e a envia para a fumaça desde o princípio. Eis o eixo fatal sobre o qual gira toda a máquina de nossa miséria: ter as coisas que não queremos de forma alguma e não ter aquelas que gostaríamos de ter. Eis, pelo contrário, o fundamento seguro sobre o qual toda a nossa alegria repousa: querer tudo o que temos e não querer o que não poderíamos ter. Que violência, que rigor seria capaz de nos tirar este bem? Que Tirano poderoso e cruel poderia nos impedir de chegar a este ponto, ou poderia nos fazer perder o que conquistamos dessa forma? Assim, cumprimos nosso principal desígnio pela perfeição de nossa alegria; somos os Operários dessa alegria, nós a construímos com nossas próprias mãos. Assim, nós nos protegemos dos esforços e das malícias da Fortuna. Qualquer um que não espere e não tema nada a desarma inteiramente e tira de suas mãos qualquer possibilidade de fazer mal. Depois de nos ter enganado e nos ter feito perder a esperança, ela se esforça por nos fazer sentir medo, que é uma dor antecipada, que vem fora do tempo, e que nos aflige muito acima da necessidade que teríamos de nos afligir, quando os males que ela nos apresenta serão, então, verdadeiros. Há, assim, essa diferença entre o mal-estar que a perda de um bem nos causa e a apreensão que a precede: esta última nos atormenta por muito mais tempo do que a outra. Portanto, sendo mais longa no tempo, ela é mais desagradável, na medida em que acrescenta à amargura que lhe é natural este infeliz incômodo de vir mais cedo do que deveria.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 165-167.

Segunda máxima - Capítulo II

CAPÍTULO SEGUNDO
Esta é uma infelicidade contra a qual o sábio saberá se garantir, sem nenhuma dúvida. Assim como ele se conservará vazio de toda esperança e de todo temor, não havendo lugar para se ver frustrado em sua espera; nada acontecerá que seja contrário a seu desejo. Na medida em que ele for mestre de sua vontade, será também mestre da Fortuna. E assim como em todas as coisas ele considerará a razão como soberana, elas [todas as coisas; ndt] sempre chegarão até ele segundo seu desejo; ele gozará de uma felicidade incomparável; ele possuirá uma vantagem tão grande nisso que tudo aquilo que há de maior e de mais magnífico no mundo será incapaz de lhe causar tentação, nem será capaz de lhe fazer inveja. Houve Príncipes cuja volúpia era tão cara quanto sua grandeza, a tal ponto que chegaram a considerá-la mais do que a própria Fortuna, a preferi-la mais do que a própria vida. Quão feliz é aquele que construiu fundamentos sólidos para sua alegria, a ponto de ela lhe fazer possuir tudo aquilo que os outros desejam sem que, porém, ele tenha tido sequer o desejo de possuir. Quão feliz é aquele que, se contentando com pouco, ama muito mais o dever a si mesmo do que à Fortuna, e que, para ser rico, não tem nenhuma necessidade dos bens que vêm dela. A verdadeira riqueza deve ser medida pelo coração e não pelo cofre; ela não depende em nada da opinião, mas da consciência; e nós devemos muito mais nos reportar ao nosso próprio julgamento do que ao testemunho de outros. Há muito mais a se dizer sobre ser rico de verdade, do que somente por reputação. Se estimarmos a riqueza pela aparência, se nós a acreditarmos grande por causa do grande espaço que ocupa, correremos o risco de vacilar. Aquele que, à vista, parece muito grande, será pequeno diante da cobiça. Isso é como um homem que tenha muitas filhas para casar: por mais que ele seja repleto de bens, não deixa de se crer pobre, a cada vez que sonha com o que deverá assumir. Como é que aquele que tem muitos desejos para contentar, um dos quais nem a posse do mundo inteiro seria suficiente, poderá ser estimado como rico, visto que não apenas ele não se crê rico, como também imagina que será reduzido à última necessidade? Para dizer de forma mais clara, esse homem não é pobre porque não tem bens, mas porque deseja tê-los. É preciso entender que, para tê-los, não é preciso ter necessidade deles, desejá-los. Sócrates, uma vez, no mercado de Atenas, considerando as coisas que ordinariamente se encontram nesse tipo de lugares, disse: como há coisas das quais eu não preciso. Ele tirava essa vantagem – e aqueles que o viam reconheciam que ele não invejava nada – do fato de não desejar nada. Verdadeiramente, não duvidemos disso, é mais rico e mais feliz aquele que não deseja nem espera nada; mais do que aquele que obtém tudo o que deseja. Aquele tudo tem, gratuitamente, graças ao privilégio de sua moderação; o que, para o outro, custa uma infinidade de penas e de desejos.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 163-164.

Segunda máxima - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO PRIMEIRO
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SEGUNDA MÁXIMA
QUE é preciso nada esperar e nada temer

CAPÍTULO PRIMEIRO
Sendo que estamos suficientemente instruídos quanto ao meio infalível para estabelecer firmemente nossa alegria, e estando de posse dos primeiros fundamentos sobre os quais se deve edificar a nossa felicidade, deveremos nos dedicar, em seguida, a conduzi-la à perfeição, falta-nos levá-la à sua satisfação. Para isso, ajustaremos à máxima que nos protege de estender nossa vontade para além de nosso poder, a máxima segundo a qual, para sermos verdadeiramente felizes, devemos nos esvaziar de esperança e temor. Essas são, sem dúvida, as duas paixões que nos possuem com mais poder, e que nos dão menos descanso. Ora, o segredo excelente e raro para nos defendermos da inquietude e dos cuidados perpétuos que essas paixões nos suscitam é fazer uma escolha bem clara, um discernimento bem exato, daquilo que nos pertence e daquilo que não nos diz respeito de forma alguma: é preciso reconhecer cuidadosamente quais são os verdadeiros bens, os que merecem que liguemos nosso coração inteiramente a eles; separá-los das coisas que pertencem à Fortuna, aquelas coisas que são seus brinquedos ou que ela emprega para a nossa ruína. Assim, não cometeremos nem a impiedade de nos queixarmos de Deus, nem a injustiça de acusar os homens; não imputaremos nem a Ele, nem a eles, a causa dos males de que apenas nós somos culpáveis. Assim, estará em nosso inteiro poder não ser jamais nem tristes nem infelizes. Será possível desejar uma felicidade mais perfeita? Como há vários níveis de infelicidade, coloco no primeiro nível, aquele cuja a infelicidade vem do fato de algo acontecer contra o desejo; mas coloco no último, coloca no mais alto nível, aquele cuja a infelicidade vem do fato de que a espera é frustrada. Para dizer mais claramente, aqueles que temem simplesmente são infelizes; mas aqueles que esperam são absolutamente miseráveis. Sem dúvida, não seremos nem um, nem outro, nos esquivaremos de forma muito feliz de todas as finezas da Fortuna, se nos resolvermos a desejar apenas as coisas que podemos ter como nossas, a não desejar aquelas coisas que só podem vir dela [da Fortuna; ndt] e que é seu único poder. Certamente, qualquer um que tenha banido de seu espírito essas duas violentas causas da ruína de nosso repouso, qualquer um que tenha se desfeito, que tenha se purificado dessas duas paixões, pode se gloriar do fato de se ter feito um asilo inviolável contra todos os esforços da Fortuna. Nesse estado, certamente poderemos dizer que conseguimos uma inteira vitória sobre um inimigo igualmente poderoso e pertinaz, que não apenas é forte por causa de sua própria força como também o é por causa de nossa fragilidade. E tão logo levarmos em consideração as coisas que ela emprega para combater contra nós, descobriremos, surpresos, que ela as retirou todas de nossas próprias mãos, que fomos nós que lhe fornecemos todas as máquinas e todas as armas que ela usa para guerrear contra nós. Por que temos tanto medo do vão furor dos Tiranos? Disse sabiamente um Filósofo da antiquidade [no original latino, Nieremberg não cita o autor. Será preciso, posteriormente, investigar de quem é a citação que se segue; ndt]. Eles só são perigosos quando pensamos que sejam e os tememos. Não tenhamos nem esperança nem temor, e eles não terão nem poder nem força. Mas, se nos deixamos dominar por uma ou outra dessas paixões, para não dizer por ambas, eles se tornam muito poderosos; nós os fortalecemos e lhes damos as armas que serão usadas contra nós mesmos; não haverá salvação para nós; fabricaremos com nossas próprias mãos as correntes que nos prenderão e nos tornarão servos [O original latino cita a seguinte frase: "Quid tanium miseri feros tyrannos / Mirantur, sine viribus furentes? / Nec speres aliquid, nec extimescas: / Exarmaveris impotentis iram. / At, quisquis trepidus pavet, vel optat, / Quod non su stabilae, sutque iuris, / A iecit clypem, locoque motus / Nec ut, qua valle it trahe, catenam". Porém, o texto não está bastante nítido. Na sequência dessa citação, Nieremberg se refere a São Paulino de Nola, citando um trecho que, no texto que possuímos, não se encontra suficientemente claro para ser transcrito. Parece que a citação anterior pode ser atribuída ao próprio São Paulino, no entanto, visto que o Louys Videl trata a citação como sendo de um "Filósofo da antiquidade" e o texto latino não refere nada acerca do autor da citação, temos dúvidas de que se trate realmente desse autor; ndt]. Não haverá baluarte mais firme do que esse: não ser possuído nem de esperança nem de temor. Isso é como possuir altamente a paz e a alegria. Não nos coloquemos mais em busca da felicidade; não cuidemos mais de querer saber onde ela se encontra; nós já a encontramos – ela está dentro de nós. Saberemos disso quando nos livrarmos das mãos desses Tiranos cruéis que mantêm nossa alma num contínuo mal-estar, que lhe fazem sofrer um perpétuo suplício, seja por causa do insaciável ardor de adquirir, seja por causa de um miserável temor de perder.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 160-162.

sábado, 21 de agosto de 2010

Primeira máxima - Capítulo XI

CAPÍTULO UNDÉCIMO
Quais são, portanto, os bens que devemos considerar verdadeiramente como nossos? Podemos ficar certos da posse de que bens? Que não poderão nos ser retirados nem contestados por ninguém? Sem dúvida, são os bens do espírito; a bondade, a inocência dos hábitos, as ações honestas e legítimas, as afeições saudáveis, as boas obras e todo o resto de coisas que pertencem à Virtude, que estão em sua jurisdição e sob o seu domínio. Em uma palavra, tudo aquilo que está sujeito à Vontade, tudo aquilo que lhe deve obediência e dela depende soberanamente. É apenas sobre isso que podemos ter poder; porém, não temos poder algum sobre as coisas que pertencem à Fortuna. E certamente ainda que pareça que ela nos deixe [aquilo que é de sua posse; ndt], ainda que nos pareça que podemos ser seus mestres e que, com efeito, elas estejam em nossas mãos, elas não estão de forma alguma a nossa disposição. Guardemo-nos de acreditar que, por causa disso, seremos menos felizes. Reconheçamos, pelo contrário, que nossa alegria consiste exatamente em não possuir nada dessas coisas; e que foi partilhado conosco algo de muito mais alto, visto que tudo o que há de nobre e precioso nos pertence, e tudo o que há de abjeto e vil pertence a ela. Assim, ainda que não possuamos seus bens, não devemos pensar que somos menos ricos; pelo contrário, nós o somos ainda mais quando não temos seus favores e sua ajuda. Nossa riqueza é ainda maior, visto que procede puramente de nós mesmos e, consequentemente, não é manchada pelo lixo da cobiça – não há, portanto, nenhum pedaço de lama misturado em nosso ouro. Mas, nós decaímos dessa tão digna e nobre partilha quando nos abandonamos ao amor das coisas exteriores. Eis aqui, certamente, a maior perda que podemos sofrer: buscando bens fora de nós, perdemos aquilo que temos dentro de nós, que vale mais do que todas as riquezas, que todas as superfluidades da Fortuna. Perdemos uma vontade reta e bem ordenada, um desejo legítimo das coisas, que é o bem e como que o patrimônio de cada um em particular. Esta vontade se desvia e se agarra quando se lança na busca das coisas que não dependem dela, e perdemos, em nós, a tranquilidade a partir do momento em que imaginamos encontrá-la [à tranquilidade; ndt] em outros lugares. Assim, esse duplo fracassso nos chega: perder nossos próprios bens e não obter os dos outros, ser não apenas desprovido de toda a nossa posse, como também de decair de nossa esperança; um e outro é iguamente cheio de vergonha e de desespero.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 158-159.

Primeira máxima - Capítulo X

CAPÍTULO DÉCIMO
Portanto, não há mais dúvida de que é necessário considerar seriamente as coisas, e olhá-las de perto e com o mesmo cuidado com que olhamos para uma mercadoria ou para uma moeda: é preciso ter bem clara a sua espécie e verificar bem se são justas antes de recebê-las e alojá-las em nosso coração. Assim, nunca seremos surpreendidos; e nos protegeremos dos enganos que elas nos poderiam causar. Julgaremos se aquelas para as quais o nosso afeto se volta estão na disposição da Fortuna, se podemos encontrar segurança nelas, se não são, de fato, daquelas que ela [a Fortuna; ndt] só nos dá com o desígnio de as retomar para si e que só nos são concedidas para nos serem tiradas, se podem nos afligir com sua fuga. Imitemos, nesse sentido, os Chineses que defendendo muito rigorosamente a entrada de estrangeiros em seu Reino, afastando-os com a severidade de suas leis, a têm, dessa maneira, mantido numa paz eterna. Este conselho é para que consigamos vencer o mais felizmente possível, para que saibamos que a Fortuna não faz nenhum esforço que dure, e que aquilo que age com violência não dura muito tempo. Se queremos, portanto, estabelecer-nos numa verdadeira tranquilidade, devemos tomar exatamente o cuidado de não receber nada de exterior, nada que nos pareça minimamente capaz de causar problemas e desordem. Todavia, nós fazemos sempre o contrário: abrimos a porta do nosos coração para as paixões desordenadas, recebemos maus desejos; somos tão pouco cuidadosos com a dignidade do lugar onde Deus mesmo escolheu habitar, dando retiro a assassinos  e ladrões, que cometemos a indignidade de tornar uma caverna o seu [de Deus; ndt] templo. Damos nosso amor a coisas que fogem de nós tão rapidamente quanto chegam a nós, que nos deixam imediatamente e, de forma infiel, escondem de nós a sua partida. Certamente que para adquirirmos nisso uma inteira e perfeita segurança devemos seguir o exemplo daquele Rei da Trácia [no original latino, Nieremberg afirma: "Pietas nostri esset crudelitas Diomedaea, omnes istos obtruncare hospites". Trata-se, portanto de Diomedes da Trácia, gigante, filho do deus Ares e de Cirene, uma ninfa da Tessália; ndt], que matava seus hóspedes. Cometer um crime como o dele seria a nossa salvação e motivo de louvor, e não seríamos tão lastimáveis quanto ele foi desumano. Que isso nos ensine o quão importante é pensar seriamente em nós quando de um encontro como esse, e de como é notavelmente vantajoso para nós tomarmos essa precaução. Se é uma grande loucura nos dedicarmos a algo que sabemos que não nos levará a lugar algum, é faltar com o sentido se aplicar na procura de bens exteriores, querer fazer nosso aquilo que é de outros, querer tornar livre o que, por sua natureza, é servil. Nós nos obstinamos num caminho cujo sucesso nos é absolutamente impossível; nós nos fazemos operários de nossa própria tristeza. Buscando coisas que estão fora de nós, nós nos expomos a todos os perigos da terra e do mar; à inveja de nossos vizinhos, ao ódio, ao poder de nossos inimigos, à perfídia de nossos criados, aos caprichos da Fortuna, ao rigor da morte mesma. Nós nos fazemos um estrago irreparável quando nos dedicamos à fragilidade das coisas que, ordinariamente, têm tão pouca pega, são tão enfermas, caem sem que ninguém as empurre. Apoiando-nos nelas, caimos junto com elas; acrescentamos à tristeza de nossa queda infalível a maior de todas as tristezas, que é a de cair na desgraça perante Deus, de fazer dele um inimigo, de lançar sobre nós todo seu ódio e toda a sua cólera. Quem é que seria tão temerário de querer combater contra um adversário tão poderoso, que pretenda resistir a forças tão grandes como são as da miséria humana? Ela [a miséria humana; ndt] nos arranca, com todas as suas forças – que não são nossas –, aquilo que nos pertence legitimamente, aquilo que trazemos no nosso coração, a tranquilidade, a alegria.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 155-158.

Primeira máxima - Capítulo IX

CAPÍTULO NONO
Aprendamos disso que, para amar essas coisas, não as podemos possuir. E ainda que pareça que elas nos pertencem de forma absoluta, lembremo-nos que sua dona será sempre a Fortuna. Verdadeiramente, ela sofre quando nós usamos de suas coisas, mas ela se reserva sempre a propriedade de tudo [o que nos empresta; ndt]; ela é uma criança, por isso não pode transmitir nada de seu. Quando ela nos tiver dado todos os seus bens, ela não deixará de sempre ter o direito de as retomar para si, a doação será anulada e, segundo os termos da lei, será preciso rescindir o contrato. Ela é menor de idade – é o que parece quando consideramos seus jogos e brincadeiras – ela dá e toma com a mesma mão, como as crianças, disse um Filósofo [o texto latino faz referência a um certo "Philippus Abbas"; segundo consta, trata-se provavelmente de Felipe de Harveng, que foi abade em Notre-Dame de l'Aumône (Nossa Senhora da Esmola), abadia cirteciense. Era arquidiácono de Liège em 1146, quando Bernardo de Claraval solicitou sua companhia para pregar a cruzada na Alemanha. Não há muitos dados acerca desse personagem. Sabe-se, porém, que em 1179 ainda era vivo (cf. Migne, 1855, p. 566); ndt]. Além do mais, qual a segurança que podemos ter de nos apoiar em muletas quebradas? Não seria uma loucura nossa querer construir nossa felicidade de maneira tão frágil e ruinosa? Teremos, diante disso, apenas o desprazer infalível de ver não apenas nosso edifício desabar em ruínas, como também de o ver caindo sobre nós e nos encontrando destruídos. E, para bem dizer, não seria estranho que tendo a luz para reconhecer isso, nós não tenhamos capacidade de resolução suficiente para evitar que isso aconteça? Nós nos tornamos dessa forma tão culpáveis de nossa infelicidade quanto de amar aquilo que nos causa a perdição e o engano. Que marca maior de nossa extrema fraqueza poderíamos mostrar? Quando alguém se lamenta da infidelidade da Fortuna, coloca juntas duas coisas que são muito contrárias entre si – ter conhecido, ter sabido que ela é publicamente enganadora e, no entanto, ter se fiado dela. Se, ao menos, esse alguém fosse capaz de pedir desculpas por um dos dois erros, ele seria menos afligido e, por isso, menos condenável. Mas, quem, vendo perecer as coisas que amou e que não ignorava serem caducas e perecíveis, não sente vergonha de ter ligado a elas sua afeição e desprazer de as ver perdidas? Quem estaria tão pouco à vontade a ponto de ser desenganado da opinião que tinha antes tão solidamente? Porque esta é a maldade da cobiça: nos enganar mesmo naquilo que conhecemos com mais certeza. Que estranha contrariedade! Nós nos surpreendemos  com o fato de que as coisas perecem, acreditando que sua duração é uma milagre; e a admiração que ela nos dá vem da segurança que temos de sua infalibilidade. Por que será que sua antiquidade faz com que sejam consideradas com respeito religioso? Quando, ordinariamente, elas são agradáveis mesmo é quando são novas. Isso só pode ser porque, sendo de sua Natureza serem frágeis e caducas, nós achamos que é raro e maravilhoso quando elas ultrapassam os esforços do tempo; e começamos a achar mesmo que sua duração é uma novidade que lhe aumenta o preço e o valor. Não há nada de eterno no mundo. A Fortuna que reina no mundo soberanamente produz nele constantes mudanças, constantes revoluções. Ela submeteu tudo à alteração e à vicissitude; e nós aprendemos pela experiência que não apenas os anos, os meses, os dias, em nada se parecem uns com os outros, ainda que sejam filhos de um mesmo Pai, como também quase os instantes não têm o mesmo rosto e são diferentes uns dos outros. Depois disso, é preciso se perguntar se há alguma coisa sob o Céu que possa ter o direito de pretender a eternidade. Não haveria razão em se afirmar que, se há alguma coisa de longa duração, ela é de Natureza mais excelente que as demais? E, como aquelas coisas que são raras e singulares são tanto mais estimadas, por isso mesmo elas se aproximam da Divindade, que é rara e singular, que é imortal. Assim, honramos muito mais aquelas coisas que a antiguidade consagrou, porque, nelas, descobrimos alguns traços da excelência de seu princípio, descobrimos que elas têm relação com ele, na medida em que ele é singular e imortal [Nieremberg se refere a Deus,apesar de o tradutor ter usado minúsculas; ndt].

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 152-155.

Referência:
MIGNE, M. L'Abbé. Nouvelle encyclopédie théologique, ou nouvelle série de Dictionnaires sur toutes les parties de la Science Religieuse, offrant, en français et par ordre alphabétique, la plus claire, la plus facile, la plus commode, la plus variée et la plus complète des théologies. Ces dictionnaires sont ceux: de biographie chrétienne en anti-chrétienne, des persécutions, d'éloquence chrétienne, de littérature id., de botanique id., de statistique, id., d'anecdotes id., d'archéologie id., d'héraldique id., de zoologie, de médecine pratique, des croisades, des erreurs sociales, de patrologie, des prophéties et des miracles, de décrets des congrégations romaines, de indulgences, d'agri-silvi viti-horticulture, de musique id., d'épigraphie id., de numismatique id., des conversions au catholicisme, d'éducation, des inventions et découvertes, d'ethnographie, des apologistes involontaires, ds manuscrits, d'anthropologie, des mïstères, des merveilles, d'ascétisme et des invocations a la Vierge, de paléographie, de cryptographie, de dactylologie, d'hiéroglyphie, de sténographie et de télégraphie, de paléontologie et de cosmogonie, de l'art de vérifier les dates, des confréries et corporations, et d'apologétique catholique. Publiée par M. L'Abb. Migne, éditeur de la Bibliothèque Universelle du Clerge, ou Des Cours Complète sur chaque branche de la Science Ecclésiastique - Tome Vingt-Troisième: Dictionnaire de Patrologie. Paris: J.-P. Migne, Editeur, 1855.

Primeira máxima - Capítulo VIII

CAPÍTULO OITAVO
É preciso dizer ainda uma vez que tudo aquilo que existe de bens que não venham de nossa Vontade é enganador e fugidio, porque são externos e servis; e nada permanece em nosso coração se não proceder de verdade da Vontade. Para vós, em quanto tempo Dionísio foi expulso do Reino da Sicília [trata-se de Dionísio I, o Velho (c. 430 a.C. – 367 a.C), tirano de Siracusa a partir de 405 a.C. que foi derrotado na guerra de 383 a.C. contra Cartago, sendo obrigado a pagar, como indenização de guerra, oferecendo toda uma região da Sicília para Cartago; ndt], e Tarquínio em quanto tempo perdeu o reinado de Roma [Tarquínio, o Soberbo, é considerado o último rei de Roma, tendo reinado entre 535 a.C. e 509 a.C., quando foi deposto por uma revolta dos cidadãos romanos contra a dominação etrusca em Roma e contra a tirania do rei. Faleceu em 496 a.C.; ndt]? Foi no espaço de apenas um dia: entre a manhã e a noite seus diademos desapareceram, seus tronos caíram por terra, e todo o poder deles foi destruído. A Fortuna conhece bem o meio para fazer Reis vigilantes e magistrados despertos, colocando-os no cargo por apenas um dia. Na verdade, podemos dizer que seus favores [os da Fortuna; ndt] são como um Astro que se levanta depois do Sol e não espera que ele se ponha para se retirar. Conhecemos o Cônsul Romano que não dormia durante o tempo em que assumiu o cargo, para que ele [o cargo; ndt] nunca pudesse ver a noite [no original latino, Nieremberg se refere a Rebilo: “Revilius uno die Consul fuit: quis vigilantior, quam qui somnum non vidit; cum non esset Flamen, fuit Dialis?”. Segundo consta, Caio Canínio Rebilo foi nomeado cônsul por apenas um dia, pelo Imperador Júlio César. Tudo o que conseguimos de dados acerca desse personagem revela que ele, durante a Batalha de Alésia, no ano de 52 a.C., contra os gauleses, era responsável por uma das legiões que enfrentaram as tropas de Vercingentórix. Plutarco, em sua Bioi Paralleloi – Vidas paralelas – se refere a Caio Canínio Rebilo, ao tratar da vida de Júlio César: “As for the men of high rank, he promised to some of them future consulships and prætorships, some he consoled with other offices and honors, and to all held out hopes of favor by the solicitude he showed to rule with the general goodwill; insomuch that upon the death of Maximus one day before his consulship was ended, he made Caninius Revilius consul for that day” (Plutarch, 1909); ndt]. Nós até poderíamos, de alguma forma, desculpar esses bens estranhos se o seu defeito fosse apenas sua inconstância e se o mal que eles nos fizessem não fosse mais do que simplesmente nos deixarem às escondidas. Poderíamos perdoá-los se sua fragilidade fosse todo o seu crime, mas o pior é que ela [sua fragilidade; ndt] se degenera muito frequentemente em malícia e, não se contentando apenas em levar consigo nossa alegria, eles levam também nossa vida: através do desespero, eles ajustam ao engano a crueldade. Sem dúvida, um grande homem teve razão em dizer [o original latino se refere a "sanctus Paulinus". Segundo consta, Poncio Ancio Merópio (355-431), conhecido como Paulino de Nola, é conhecido como um dos Padres da Igreja Ocidental. Foi, na juventude, Cônsul romano na Gália. Depois de batizado, abandonou tudo e, junto com sua esposa, foi viver uma vida eremítica. Em 394 foi ordenado sacerdote e, em 409, nomeado bispo de Nola. É venerado como santo; ndt] que é uma falsa e infeliz alegria, que procede de um coração orgulhoso, que sente tanto mais tristeza pela queda de sua fortuna quanto mais alto se tiver elevado. O que restou, finalmente, do famoso Tirano de Samos, depois da profusão de favores que a Fortuna lhe concedeu [o original latino se refere a Polícrates que foi tirano da Ilha de Samos entre 538 a.C. e 522 a.C.; ndt]? O que ele pôde mostrar de todos os bens que ele teve o prazer de acumular? Ela [a Fortuna; ndt] teve uma tão grande paixão por ele, que não lhe permitiu uma mínima experiência que seja de tristeza, não interrompendo nem um pouco o curso de graças que lhe concedia. Mas, depois disso tudo, o que lhe aconteceu?  Ela o deixou tão prontamente quanto lhe havia seguido constantemente; e por um cruel revés, tendo-o desprovido de toda sua pompa e de todas as suas riquezas, ela lhe arrancou também a Vida; ela lhe retirou esse último bem, devido à usura de todos aqueles que ela lhe havia emprestado; e só lhe deixou a infâmia do patíbulo onde ele foi pendido. Nisso, de fato, ela não pareceu menos justa que rigorosa, punindo através do suplício de Ladrões àqueles que fizeram seus os bens que não lhes pertenciam, retendo pela força aqueles bens que não poderiam possuir legitimamente. A quantos homens se pode encontrar a quem ela [a Fortuna; ndt] tenha coberto de ouro enquanto viveram e a quem, depois, ela deixou faltar terra para sua sepultura? Ela não tratou melhor o favorito insolente de Assuero [não conseguimos identificar com precisão de quem se trata. Segundo consta, Assuero é um nome usado algumas vezes em relatos do Antigo Testamento e parece estar ligado ao rei persa Xerxes I (c. 519 a.C. – c. 466 a.C); ndt]: como ele gozou dela durante a vida, ele foi seu brinquedo em sua morte. Um fim parecido espera todos aqueles que correm atrás dos bens externos, e devem ser chamados apenas de usurpadores e ladrões da felicidade, e não de possuidores legítimos. Frequentemente, eles morrem pendurados a uma linha de esperança; e como eles só se seguram à Fortuna por um fio de cabelo, que é bastante insuficiente para mantê-la quando ela se lhes escapa, isso é suficiente para lhes tirar a vida, e seu desespero lhes tece a corda [da qual penderão; ndt]. Assim, esta infeliz felicidade não apenas enganou a muitos, como também foi a causa da perda de muitos: eles encalharam, naufragaram, tão logo o vento da boa sorte [no original latino e no francês, o autor faz uso do termo fortuna, com letra minúscula; por isso, optamos por traduzir por sorte; ndt] lhes faltou; e como eles só conseguiam respirar com esse vento, eles pararam de viver tão logo ele parou de soprar. Tão logo ela [a Fortuna; ndt] lhes emprestou uma doçura qualquer na vida, tão logo ela lhes concedeu o prazer de saborear essa doçura, ao mesmo tempo, ela lhes retirou. Isso foi como roubar-lhes a vida – roubar-lhes as coisa que lhes eram caras. Isso foi como entregá-los à morte pelas mãos de seu ministro – abandoná-los ao extremo desprazer de serem privados de seus favores.  Mas, será que eles não sabiam que por mais força que se empregue na manutenção desses bens, sempre se é incapaz  de impedir que a Fortuna se lhes arranquem? Tenta-se de todas as formas agarrá-los e estreitá-los nos braços, e ela não apenas retira tudo o que dá, como também faz muito mais: usando ao mesmo tempo de justiça e de violência, ela tira aquilo que lhe é legítimo e também aquilo que não se deve a ela.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 149-152.

Referência:
PLUTARCH. Plutarch's Lives of Themistocles, Pericles, Aristides, Alcibiades and Coriolanus, Demosthenes and Cicero, Caesar and Antony. Vol. XII. New York: P.F. Collier & Son, 1909.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Primeira máxima - Capítulo VII

CAPÍTULO SÉTIMO
Há, portanto, essa diferença entre as coisas que nos pertencem e aquelas que dependem da Fortuna: aquelas são livres e essas não o são. É por isso que se quisermos nos conservar essa rara vantagem de só depender de nós mesmos, devemos ter por indiferente aquilo que não está em nosso poder. De outra forma, certamente não conseguiríamos evitar nos tornar escravos; nossa paixão será nossa servidão; ela será o título segundo o qual ficaremos inteiramente no poder de outros. Todavia, nós nos abandonamos, sem discrição e sem escolha, ao amor das coisas que não nos pertencem; nós nos submetemos a esses escravos e não temos vergonha de fazer deles nossos mestres. Nisso, nós nos parecemos com o dissipador que, tendo coberto a cabeça de seu cavalo, o deixou ir ao acaso, deixando que ele fosse para onde a sorte o levasse. Nós fazemos a mesma coisa; por uma cegueira voluntária, tiramos de nós mesmos os meios para escolher nossos mestres, de tal forma que se pode dizer de nós aquilo que um santo disse de um cego abandonado à própria sorte [no texto latino, Nieremberg se refere a Santo Enódio: “Perinde caeci mancipamur rebus, ut nec herorum optionem velimus. Dixerim & de libidine nostra, quod de libidinoso caeco beatus Ennodius: Nil videt, & rectum servat iter scelerum”. Magno Felix Enódio (474-521), nasceu em Arles e morreu em Pávia. Foi bispo de Pávia, sucedendo o bispo Máximo de Pávia, a partir de 511; ndt], que ele nada vendo, pelo menos não deixava de manter firme o reto caminho do pecado. Sem dúvida, nascemos para comandar e, por um miserável e cruel instinto de nossa cobiça, que nos domina, que nos cega, nós seguimos um caminho reto em direção à mais vil, à mais vergonhosa de todas as servidões. E, certamente, tornando-nos servidores de servidores, usurpamos indignamente – para nossa grande confusão – esse excelente título do soberano Pastor da Igreja; criamos nossa própria infâmia com aquilo que compõe a glória de sua humildade. Um grande homem disse muito sabiamente que aqueles que se ligam ao amor das coisas caducas e passageiras são os criados que servem a outros criados [no original latino, Nieremberg se refere ao Papa Simplício (c. 430-483); ndt]. Ser servidor dos servidores de Deus é, porém, estar no mais alto degrau da honra; mas é cair na mais baixa infâmia se tornar escravo dos escravos da Fortuna. Consideremos, eu vos peço, essa grande sequência de criados, que obedecem uns aos outros; vejamos esses diversos estágios da servidão; encontraremos no mais baixo nível justamente aqueles que são escravos dos bens. Cada um deles é obrigado a reconhecer pelo menos dois mestres – um de casa e outro de fora. O primeiro é o apetite sensual e brutal que, se tornando rebelde à Razão, e se sublevando contra ela, lança-a para fora de seu trono, e a entrega, junto consigo mesmo, ao mestre de fora, que é a Fortuna, que também é sujeita à sua própria inconstância e depende de seu próprio capricho. Mas, eis que é ainda pior quando impomos a nós mesmos essa servidão: nós fazemos isso voluntariamente, de nosso bom grado. Os maus criados, frequentemente, executam com lamentos as ordens de seus maus mestres. Nós, ao contrário, obedecemos sem resistência e sem dificuldade alguma ao nosso apetite corrompido ainda que seja para a nossa tristeza, para o nosso prejuízo; vendo que é ele quem nos cega e nos fazer correr atrás desses bens estranhos e fugidios. 

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 147-149.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Primeira máxima - Capítulo VI

CAPÍTULO SEXTO
Mas, pressupomos que os favores e a liberalidade da Fortuna sejam, para nós, inumeráveis e sem limites, que não se contentando de nos confiar tudo que ela tem de bens e nos deixando fazer livre uso, ela se livra da propriedade e converte em dom o que é um empréstimo, e algo que é apenas deposto se torna um presente. Será que somos tão frouxos no sofrimento a ponto de ela ter vantagem sobre nós? Ela nos arruína mais e a menos honesta de todas; nos obriga vergonhosamente a sua inconstância e a seus caprichos; faz nossa inimiga nossa amante; rouba nossa liberdade e, consequentemente, rouba um bem que ultrapassa todos os outros bens juntos, um bem que não poderá ser substituído por nenhum outro. Pressupomos que ela os submeteu inteiramente ao nosso poder e que eles dependem, assim, absolutamente de nós, assim como um escravo depende de seu mestre. Será que não sabemos que há muito pouca segurança na fidelidade dos escravos de quem, como só são mantidos pela força, só se pode esperar o ódio, a ordinária rebeldia e preguiça, a libertinagem e a fuga? Uma família de pessoas livres vale, incomparavelmente, muito mais, sem dúvida. Nela nós podemos confiar inteiramente e tanto mais nos assegurar quanto aos serviços que ela nos presta, visto que vêm do amor que ela tem por nós, que é o princípio e o fundamento. As coisas que dependem a Vontade são como esses criados nascidos de forma feliz, sem nenhuma mancha de servidão. São filhos livres de uma mãe livre, que sentem a alegria de sua condição, que não podem ser sujeitados nem obrigados, que estão numa absoluta independência. Pelo contrário, tudo o que está fora do controle da Vontade, necessariamente, está na condição de servidão, é um escravo perpétuo e, às vezes, é até mesmo sujeitado pelos escravos. Eis o quanto a condição daqueles que ela [a Fortuna; ndt] liga a si através de seus favores é infeliz e deplorável, visto ser uma condição tão incerta que não pode existir escravo mais fraco que não seja capaz de despojá-los [àqueles que a Fortuna liga a si; ndt] de tudo, que não seja capaz de tirar-lhe a própria vida, tirar-lhes os bens, as honras e todo o resto de vantagens que vêm dela [da Fortuna; ndt]. E, na verdade, que liberdade as coisas podem ter, quando pertencendo a nós, estão à disposição de todos? Podem nos ser tiradas a qualquer momento e passar para a posse de outro? São sujeitas a mil desencontros e a uma infinidade de inconvenientes. Guardemos, pois, muito bem de nos assegurarmos quanto a estes escravos infiéis e fugitivos, e não sejamos tão fracos a ponto de nos afligir quando eles nos deixam; é melhor que, antes, nós os deixemos e nos previnamos deles afastando-os de nós. Que cada um diga para si o que um Filósofo disse após a fuga de seu escravo [no original latino, Nieremberg se refere a Diógenes, o Cínico: “Dicat quisque, quod Cynicus, cum servus suus Manes aufugit: Turpe est Manem sine Diogene vivere posse; Diogenem sine Mane non posse”. Diógenes de Sínope (404 ou 412 a.C. – 323 a.C.); ndt], seria muito vergonhoso e muito estranho que Manes podendo viver sem Diógenes, Diógenes não pudesse viver sem Manes. Assim como os bens da Fortuna podem ser sem a sabedoria, a sabedoria pode ser sem eles. E, para bem dizer, só é quando ela se separa deles que ela consegue verdadeiramente ser feliz. Há desonra para um homem de condição livre subjugar-se àqueles que o servem, ser um criado de criados, pois isso seria como a infâmia de ser escravo de escravos... Quanta desonra mais seria se o fosse por escolha? Escravizar-se voluntariamente e deixar-se acorrentar por vontade própria?

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 145-147.

Primeira máxima - Capítulo V

CAPÍTULO QUINTO
Se a Fortuna nos expõe aquilo que ela tem de mais caro e de mais raro, se ela nos abre todos os seus tesouros e nos concede a liberdade de escolher o que nos agradaria mais possuir, aquilo que, sendo escolhido, nos obrigaria necessariamente a parar sem nada poder pretender para além disso; todavia, com essa vantagem que ninguém nos poderia arrancar, e que ela nos concederia para sempre, ao invés de escolher todas as outras coisas, não poderíamos conservar nem mesmo aquela escolhida, estaríamos certos de perdê-la. Não há dúvida que nós nos apegaríamos a esta única coisa e preferiríamos o contentamento de uma posse segura ao desprazer de uma perda inevitável. Eu vos pergunto, que outros bens como os do espírito podem se gloriar desse excelente privilégio de não perecer conosco, de só cair com nossa queda? Não seria um abuso extremo escolher mais aqueles bens cuja perda nos causa mais dor, do que aqueles bens cuja aquisição nos traz alegria? Não se verá um homem sábio ornamentar-se de roupas estranhas que lhe poderão ser retiradas. Para falar de forma saudável, tudo aquilo que não está absolutamente à nossa disposição não é para nós. Que razão temos para acreditar que o uso de um bem nos faz adquirir sua propriedade? Sem dúvida, é preciso um título [de propriedade; ndt] melhor [do que o simples uso]. A vida de nossos pais e do resto das pessoas que nos são caras, as riquezas, aquilo que a Fortuna nos empresta, aquilo que recebemos da Natureza, a saúde, a força, a boa disposição, e semelhantes coisas, tudo isso é muito pouco para nós, e não podemos nem mesmo dizer que nossa mão pertence ao nosso braço e que nossos dedos pertencem à nossa mão, visto que além de uma infinidade de acidentes capazes de nos fazer perdê-los, eles podem, a qualquer momento, cair sob os ferros de um inimigo. Não temos, portanto, nenhum direito de considerar esse tipo de bens como se eles fossem nossos; pelo contrário, sabendo como sabemos que eles são de outros, não devemos nos obstinar em retê-los, e menos ainda depositar neles nossa afeição, já que ordinariamente cada um ama aquilo que é seu e tem por indiferente aquilo que é dos outros.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 143-145.

Primeira máxima - Capítulo IV

CAPÍTULO QUARTO
Que seja esta, portanto, a primeira Máxima para o estabelecimento de nossa alegria: NÃO ESTENDER NOSSA VONTADE PARA ALÉM DE NOSSO PODER [no original latino, Nieremberg afirma: “Itaque prima lex tranquillitatis esto, compositio voluntatis, & facultatis”. Trata-se, portanto, de considerar, na obra, a palavra “poder” como “faculdade” ou “potência”; ndt]. Certamente, graças a isso, devemos ser extremamente exatos no estudo das diversas condições das coisas, e ter ainda mais atenção do que os Sacrificadores tinham quando consideravam as entranhas das vítimas, porque é disso que deveremos retirar o mais certo augúrio acerca de nosso bem ou de nosso mal. É preciso ver cuidadosamente  se as coisas que se apresentam a nós são da mesma ordem daquelas que nós podemos verdadeiramente possuir; que vindo a perecer, perecem absolutamente para nós, ou se pertencem à Fortuna, sem nenhuma dúvida. Às primeiras, podemos confiar corajosamente nosso coração; mas devemos nos guardar muito bem de nos assegurar às outras. Saibamos que elas não têm pega nem fidelidade, tanto quanto quem no-las oferece [a Fortuna; ndt]; [saibamos ainda] que a alegria que vem dela [da Fortuna; ndt] está sempre misturada com alguma amargura, que suas mais belas rosas são cobertas de espinhos, que seu açúcar esconde veneno, e que ela, frequentemente, nos faz derramar lágrimas em meio às maiores prosperidades que dela [da Fortuna; ndt] nos vêm. Portanto, é de extrema importância para nós examinar de forma cuidadosa e rigorosa a natureza das coisas antes de nos metermos com elas. Aquelas que o mundo estima de forma mais elevada e que ele considera como suas mais raras vantagens, os acontecimentos felizes, o favor público, a reputação, as riquezas, as honras, o luxo, as volúpias, a saúde, a força, as outras graças do corpo, tudo isso deve ser estudado com cuidado particular, para saber de que lado está, e se pertencem ao espírito, à Natureza ou à Fortuna. Quando estivermos certos de que elas dependem da Fortuna, devemos lhes fechar, logo de início, nosso coração, de temor que elas desordenem nossa Vontade e lhe façam se estender para além de nosso poder. Por que queremos tanto admitir em nós aquilo que deve ser a causa de nossa ruína? Aquilo que, por menor que seja o mal que se espera, nos arranca aquilo que temos de mais precioso, o repouso e a paz do espírito? Este é o cuidado ordinário que temos ter: não receber criado algum sem a segurança de sua fidelidade, a fim de não receber em nossa casa ladrões e assassinos. Será que abriríamos nosso coração aos desejos imoderados que só podem trazer desordem para dentro dele? Que loucura seria querer possuir o que não apenas não seríamos capazes de manter, como também que não seríamos capazes de ter, o que não apenas não consegue parar, como também é absolutamente incapaz de parar! A história da Ásia nos fala de um homem – de quem ela [a história; ndt] nos quer ensinar mais cuidadosamente a virtude que o nome, e que é necessário que tenhamos sempre diante dos olhos como um exemplo excelente da Verdade dessa doutrina: ele possuía uma tranquilidade de espírito tão elevada, ele foi mestre de sua alegria de tal forma que ele a conservou soberanamente em meio às mais violentas tempestades da Fortuna, e recebeu todos os traços de sua inconstância e de sua cólera, sempre com um rosto sorridente e igual [no texto latino, Nieremberg fala de um certo bárbaro do Arábia: “Abiecit ista dominia, sive famulatum dominantem Barbarus quidam Arabiae, dominus proinde suae laetitiae, hilari semper, & corridenti vultu, placidus ad omnem gestum fortunae”. Não encontramos referência a este personagem; ndt]. Como lhe perguntassem por que ele nunca fora triste, ele respondia, eu não possui nada cuja perda me pudesse afligir. Será possível dizer mais claramente que ele nunca se ocupou das coisas que dependem da Fortuna e que, nunca as estimando, cria nada perder perdendo-as?

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 141-143.

Primeira máxima - Capítulo III

CAPÍTULO TERCEIRO
O que, portanto, devemos escolher? Este excelente meio de nos preencher através do jejum? Ou esta infeliz plenitude que ao invés de acalmar nossa fome, a irrita ainda mais fortemente e nos deixa eternamente vazios, que ao invés de nos satisfazer e nos trazer alegria, nos causa mal-estar e nos traz apenas a dor? Se é possível matar nossa sede com uma gota de água, qual é a necessidade que temos do Oceano? Se nos satisfazemos abstendo-nos, por que desejamos ficar cheios? Visto que, por esse meio, caímos em um ou outro desses inconvenientes: ter um desgosto ou aumentar nossa fome. O ardor e a avidez de nossa cobiça é tão grande que nada é suficiente: quanto mais a nutrimos, tanto menos ela se embriaga. Observou-se que aqueles que comem uma ovelha mordida por um lobo sentem uma fome contínua. Quem pensa se satisfazer com as riquezas, as honras e todo o resto das coisas que estão sujeitas a se perder pelas mordidas da Fortuna, sofrem de um mal ainda mais infalível: podemos muito bem estar cheios, mas não conseguiremos ser satisfeitos. O Imperador Frederico, terceiro com esse nome [Frederico Barbarossa (1122-1190) foi o Imperador do Sacro Império Romano-Germânico, foi Rei da Itália e, sob o nome de Frederico III, foi o Duque da Suábia, pois sucedeu a seu pai, Frederico II da Suábia, no ducado dessa região administrativa da Baviera, cuja capital é Augsburgo; ndt], tendo concedido muitas coisas a um impostor que, porém, não cessava de importuná-lo e o pressionava sem parar a conceder outras coisas, lhe disse com boa vontade, se tu não puseres fim a estes pedidos, começarei a oferecer-te minhas recusas. Que cada um de nós guarde fielmente essas palavras, visto que elas podem manter-nos longe da vergonha e sem temor de repreensões. Este é o único meio de impor um limite a nossa cobiça. É por esse caminho que conseguimos pará-la, e conseguimos obstaculizá-la. E certamente se não nos livrarmos dela por meio de uma recusa absoluta, não conseguiremos nos livrar de outra maneira, pois ela nos incomodará incessantemente. Podemos, sem dúvida, receber muito mais de nós mesmos do que da Fortuna; e, por meio de uma nova e rara maneira de liberalidade, daremos a nós mesmos muito mais nos recusando todas as coisas do que se ela [a Fortuna; ndt] no-las concedesse todas. Não podemos bem julgar o valor de um homem apenas por aquilo que ele possui – assim como, diante de um árvore estéril, só podemos avaliar o estado da madeira –, mas devemos tomá-lo a partir de suas boas ações e ainda mais pelas coisas que ele não tem quando ele não as tem por vontade própria. Está aqui a melhor forma de avaliar alguém. Podemos ter pouco, mas não podemos ter tudo. Não acreditemos, por isso, ter pouco valor; pelo contrário, asseguremo-nos de que é ter mais valor desprezar todas as coisas e não desejar nenhuma.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 139-140.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Primeira máxima - Capítulo II

CAPÍTULO SEGUNDO
O remédio infalível para este mal é só querer aquilo que podemos. Assim, nossa esperança nunca ficará decepcionada. Assim, sempre teremos nossos desejos realizados. Não poderíamos desejar melhor garantia para o estabelecimento de nossa felicidade. Aí se encontra o fruto da Vontade que se ordena pelo poder. O que temos dentro do coração não nos pode ser roubado, não é de forma alguma sujeito à inconstância e aos caprichos da Fortuna, não foge e nem se nos escapa com ela. Se colocarmos nisso os limites de nossa esperança e de nossas pretensões, não seremos infelizes, nada será capaz de nos arrancar aquilo que amamos, a liberdade mesma de amar não nos será tirada. Traremos nossa paz e nossa alegria dentro de nós, num lugar estável e bem seguro, dentro de um asilo inviolável. Não começaremos nada que não pudermos terminar. Teremos tudo o que quisermos, visto que só iremos querer aquilo que pudermos ter. Não seria essa uma coisa bastante cômoda e maravilhosa: nutrir-se pelo jejum. A Vontade nutrida assim se preenche com a abstinência. Quem não creria ser um raro privilégio da Natureza se satisfazer sem carne? Seguramente não há homem que seja tão escravo de sua boca a ponto de não achar importuno o tributo que ela exige dele todos os dias – e, para alguns, todas as horas. Nisso, ele é bem injusta, pois perverte o uso da vida: ao invés de fazer como o restante dos homens que comem para viver, esses homens [que são escravos da boca; ndt] vivem para comer. Pode existir exemplo mais famoso do que a desse infame Romano que consumia, graças à sua dissolução, todos os rendimentos do Capitólio? Esse glutão insaciável, Marco Apício [trata-se de Marco Gávio Apício, um gastrônomo romano que viveu no primeiro século da Era Cristã. Era conhecido por suas excentricidades e sua enorme fortuna, que foi dilapidada no seu afã por alimentos refinados; ndt], que pagou mais para a sua barriga do que todo o Universo pagou para a sua cidade; que tendo engolido todas as coisas e não encontrando mais com o que encher a sua despensa, serviu o seu próprio desespero para os seus excessos e, por um veneno, engoliu a morte – tanto para ter a satisfação desse último festim que lhe custou a vida, ele pagou o preço com a mais cara de todas as coisas; quanto por julgar que ela lhe seria inútil, não tendo mais meios para continuar seus estranhos excessos. Certamente, há pessoas que podem bem dizer que a homenagem que prestam é bem maior do que o feudo que possuem e que a servidão ultrapassa em muito o benefício. Para não mentir em nada, podemos dizer que o cuidado de viver ocupa a vida inteira, às vezes até mesmo aos mais abstinentes e aos sóbrios. É por isso que quase todo o seu tempo é empregado nisso, sem exceção inclusive daquele que eles aplicam em seus trabalhos e exercícios, a quem pertence, de certa forma, esta obrigação natural; estando certo de que a agitação e os cuidados que são inseparáveis do trabalho, não excitando pouco o apetite, redobram desde o princípio a necessidade de alimento. Certamente também que, se esta lei importuna da natureza pudesse ser abolida, mudaríamos com muito prazer a Volúpia do gosto por outra. Nós a deixaríamos com a mesma facilidade que se costuma deixar aquilo que causa mal-estar. Se não apenas estivéssemos livres dessa cotidiana obrigação de comer, que nos acomuna aos animais, como também se o prazer que se encontra nesse ato se encontrasse semelhantemente no jejum, seguramente não seria de se acreditar que esse Imperador [no texto latino, Nieremberg cita o Imperador Públio Sétimo Geta (189-211). Diz o original: “Iam cum hac conditione libenter subscriberet Geta ipse sub literariis ferculis, quae per alphabetum digerebat, quae non poterat stomachus”; ndt] que não tinha assunto mais presente e paixão mais forte do que o luxo de sua mesa e que exigia que os alimentos fossem colocados na mesa em ordem alfabética, não teria nenhum arrependimento em renunciar à boa comida? Ou que esses famosos dissolutos, Astidamas, Clódio e Maximino [sobre o primeiro não encontramos muitas referências, a não ser a menção ao seu nome e uma breve anedota envolvendo-o num episódio de glutonice, no Semanario Pintoresco Español de 1855 (n. 1, de 7 de janeiro, p. 3): “Gastrónomos célebres. - (...) Clodio Albino fué tan trago, que en una sola cena se comió quinientos higos, diez melones ostienses, mas de veinte libras deuvas, cien zorzales ó tordos y cuatrocientas ostras (...) Astidamas Milesio fué llamado por el rey Ariobárzanes á comer, y dándole cuento estaba dispuesto para los demás convidados, que era bastantes, non dejó nada”. Como se vê, também Clódio Albino é mencionado. Este último foi Imperador romano entre os anos 195 e 197 da Era Cristã. Finalmente, quanto a Maximino, temos dúvida se se trata de Gaio Júlio Vero Máximo (173-238) – conhecido como Maximino Trácio ou Maximino I –, que foi Imperador romano entre os anos de 235 e 238 e é considerado um dos responsáveis pela Crise do Terceiro Século; ndt] não teriam se resolvido mais facilmente pela mesma decisão. Mas esse raro privilégio pertence apenas ao espírito; por uma graça que só é dada a ele, ele é capaz de se embriagar se abstendo; e se ele não conhece a cobiça, ele conhece, ele saboreia o maior de todos os prazeres, ele se coloca no meio de todas as delicias da boa comida.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 136-139.