quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Primeira máxima - Capítulo II

CAPÍTULO SEGUNDO
O remédio infalível para este mal é só querer aquilo que podemos. Assim, nossa esperança nunca ficará decepcionada. Assim, sempre teremos nossos desejos realizados. Não poderíamos desejar melhor garantia para o estabelecimento de nossa felicidade. Aí se encontra o fruto da Vontade que se ordena pelo poder. O que temos dentro do coração não nos pode ser roubado, não é de forma alguma sujeito à inconstância e aos caprichos da Fortuna, não foge e nem se nos escapa com ela. Se colocarmos nisso os limites de nossa esperança e de nossas pretensões, não seremos infelizes, nada será capaz de nos arrancar aquilo que amamos, a liberdade mesma de amar não nos será tirada. Traremos nossa paz e nossa alegria dentro de nós, num lugar estável e bem seguro, dentro de um asilo inviolável. Não começaremos nada que não pudermos terminar. Teremos tudo o que quisermos, visto que só iremos querer aquilo que pudermos ter. Não seria essa uma coisa bastante cômoda e maravilhosa: nutrir-se pelo jejum. A Vontade nutrida assim se preenche com a abstinência. Quem não creria ser um raro privilégio da Natureza se satisfazer sem carne? Seguramente não há homem que seja tão escravo de sua boca a ponto de não achar importuno o tributo que ela exige dele todos os dias – e, para alguns, todas as horas. Nisso, ele é bem injusta, pois perverte o uso da vida: ao invés de fazer como o restante dos homens que comem para viver, esses homens [que são escravos da boca; ndt] vivem para comer. Pode existir exemplo mais famoso do que a desse infame Romano que consumia, graças à sua dissolução, todos os rendimentos do Capitólio? Esse glutão insaciável, Marco Apício [trata-se de Marco Gávio Apício, um gastrônomo romano que viveu no primeiro século da Era Cristã. Era conhecido por suas excentricidades e sua enorme fortuna, que foi dilapidada no seu afã por alimentos refinados; ndt], que pagou mais para a sua barriga do que todo o Universo pagou para a sua cidade; que tendo engolido todas as coisas e não encontrando mais com o que encher a sua despensa, serviu o seu próprio desespero para os seus excessos e, por um veneno, engoliu a morte – tanto para ter a satisfação desse último festim que lhe custou a vida, ele pagou o preço com a mais cara de todas as coisas; quanto por julgar que ela lhe seria inútil, não tendo mais meios para continuar seus estranhos excessos. Certamente, há pessoas que podem bem dizer que a homenagem que prestam é bem maior do que o feudo que possuem e que a servidão ultrapassa em muito o benefício. Para não mentir em nada, podemos dizer que o cuidado de viver ocupa a vida inteira, às vezes até mesmo aos mais abstinentes e aos sóbrios. É por isso que quase todo o seu tempo é empregado nisso, sem exceção inclusive daquele que eles aplicam em seus trabalhos e exercícios, a quem pertence, de certa forma, esta obrigação natural; estando certo de que a agitação e os cuidados que são inseparáveis do trabalho, não excitando pouco o apetite, redobram desde o princípio a necessidade de alimento. Certamente também que, se esta lei importuna da natureza pudesse ser abolida, mudaríamos com muito prazer a Volúpia do gosto por outra. Nós a deixaríamos com a mesma facilidade que se costuma deixar aquilo que causa mal-estar. Se não apenas estivéssemos livres dessa cotidiana obrigação de comer, que nos acomuna aos animais, como também se o prazer que se encontra nesse ato se encontrasse semelhantemente no jejum, seguramente não seria de se acreditar que esse Imperador [no texto latino, Nieremberg cita o Imperador Públio Sétimo Geta (189-211). Diz o original: “Iam cum hac conditione libenter subscriberet Geta ipse sub literariis ferculis, quae per alphabetum digerebat, quae non poterat stomachus”; ndt] que não tinha assunto mais presente e paixão mais forte do que o luxo de sua mesa e que exigia que os alimentos fossem colocados na mesa em ordem alfabética, não teria nenhum arrependimento em renunciar à boa comida? Ou que esses famosos dissolutos, Astidamas, Clódio e Maximino [sobre o primeiro não encontramos muitas referências, a não ser a menção ao seu nome e uma breve anedota envolvendo-o num episódio de glutonice, no Semanario Pintoresco Español de 1855 (n. 1, de 7 de janeiro, p. 3): “Gastrónomos célebres. - (...) Clodio Albino fué tan trago, que en una sola cena se comió quinientos higos, diez melones ostienses, mas de veinte libras deuvas, cien zorzales ó tordos y cuatrocientas ostras (...) Astidamas Milesio fué llamado por el rey Ariobárzanes á comer, y dándole cuento estaba dispuesto para los demás convidados, que era bastantes, non dejó nada”. Como se vê, também Clódio Albino é mencionado. Este último foi Imperador romano entre os anos 195 e 197 da Era Cristã. Finalmente, quanto a Maximino, temos dúvida se se trata de Gaio Júlio Vero Máximo (173-238) – conhecido como Maximino Trácio ou Maximino I –, que foi Imperador romano entre os anos de 235 e 238 e é considerado um dos responsáveis pela Crise do Terceiro Século; ndt] não teriam se resolvido mais facilmente pela mesma decisão. Mas esse raro privilégio pertence apenas ao espírito; por uma graça que só é dada a ele, ele é capaz de se embriagar se abstendo; e se ele não conhece a cobiça, ele conhece, ele saboreia o maior de todos os prazeres, ele se coloca no meio de todas as delicias da boa comida.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 136-139.

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