segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Segunda máxima - Capítulo III

CAPÍTULO TERCEIRO
Mas, se esse homem que acabamos de imaginar pudesse ser encontrado em algum lugar, se essa raridade original que acabamos de fantasiar existisse na natureza, quem, eu vos pergunto, ousaria pretender se comparar a ele? É suficiente estar no mais alto ponto da felicidade – que é ter atingido a satisfação, que é nada desejar e nada esperar –, ao invés de simplesmente ser feliz ou obter tudo o que se deseja. É nesse nível supremo que se costuma considerar que esteja a felicidade de Deus: Ele é soberanamente feliz, não tanto porque Ele tenha tudo o que possa desejar, mas porque Ele não deseja nada. Ele a possui muito acima da alegria comum dos homens, uma alegria que não se assemelha em nada com o possuir as coisas que Ele poderia ter desejado, mas de as possuir todas sem ter tido necessidade de as desejar. Sejamos escrupulosos, portanto, depois disso, na estima que fazemos daquele que quer conseguir o que espera – ele é bem menos feliz do que aquele que não espera nada. E se é possível fazer alguma distinção entre aqueles que chegaram a esta alta região da felicidade, que é ser capazes de ordenar sua vontade através de seu poder, será que não chegaríamos a dizer que aquele que só deseja o que pode tem uma vantagem notável sobre aquele que pode tudo o que deseja? Digamos, com isso, que por mais certa que seja a esperança, ela é tão pouco necessária para a verdadeira felicidade que mais atrapalha do que serve a esta última – ao invés de ajudar a crescer, ela ajuda a diminuir; ao invés de a estabelecer, ela causa sua ruína, porque ela depende dos caprichos da Fortuna, que muito frequentemente brinca com ela; finalmente, ela a destrói pela apreensão do mal e a envia para a fumaça desde o princípio. Eis o eixo fatal sobre o qual gira toda a máquina de nossa miséria: ter as coisas que não queremos de forma alguma e não ter aquelas que gostaríamos de ter. Eis, pelo contrário, o fundamento seguro sobre o qual toda a nossa alegria repousa: querer tudo o que temos e não querer o que não poderíamos ter. Que violência, que rigor seria capaz de nos tirar este bem? Que Tirano poderoso e cruel poderia nos impedir de chegar a este ponto, ou poderia nos fazer perder o que conquistamos dessa forma? Assim, cumprimos nosso principal desígnio pela perfeição de nossa alegria; somos os Operários dessa alegria, nós a construímos com nossas próprias mãos. Assim, nós nos protegemos dos esforços e das malícias da Fortuna. Qualquer um que não espere e não tema nada a desarma inteiramente e tira de suas mãos qualquer possibilidade de fazer mal. Depois de nos ter enganado e nos ter feito perder a esperança, ela se esforça por nos fazer sentir medo, que é uma dor antecipada, que vem fora do tempo, e que nos aflige muito acima da necessidade que teríamos de nos afligir, quando os males que ela nos apresenta serão, então, verdadeiros. Há, assim, essa diferença entre o mal-estar que a perda de um bem nos causa e a apreensão que a precede: esta última nos atormenta por muito mais tempo do que a outra. Portanto, sendo mais longa no tempo, ela é mais desagradável, na medida em que acrescenta à amargura que lhe é natural este infeliz incômodo de vir mais cedo do que deveria.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 165-167.

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