terça-feira, 24 de agosto de 2010

Terceira máxima - Capítulo V

CAPÍTULO QUINTO
Sirvamo-nos de um meio infalível que temos para nos garantir do mal que ela nos pode fazer; vejamos suas mudanças como assistimos a uma comédia e não nos preocupemos com as considerações sobre o passado ou sobre o futuro. Coloquemos nela nossos olhos, sem ligar a ela a nossa afeição, e que nada dela nos toque além de suas ações presentes. Aqueles que se apresentam nos jogos públicos e no teatro se cansam e têm muito trabalho; e aqueles que, porém, os veem se divertem e sentem prazer. Se nos desfizermos de todo tipo de paixão e de interesse, consideraremos os olhos e os caprichos da fortuna [na tradução aparece com letra minúscula; ndt] e eles servirão para nosso divertimento, e nossa alegria não mudará em nada, a não ser na matéria. Vejamos as coisas passarem sem sermos tão descuidados a ponto de passar junto com elas. Consideremos sua fuga, sem fugir junto com elas. Tiremos de sua ruína e de sua perdição o prazer que sentimos na caça pela derrota e pela morte dos animais. Elas nos esgotam por dois meios: ou porque escapam de nós, ou porque, com efeito, perecem. Se for pelo primeiro motivo, que loucura é a nossa segui-las? Se for pelo outro, será que devemos estimá-las de tal forma a ponto de lhes conceder as honras, a lamentação e o luto que deveríamos sentir apenas por nossos pais? Gozemos muito mais da alegria de não perecermos com elas; e visto que não poderemos evitar perdê-las, seja pela morte delas que, por assim dizer, pela nossa morte, o que pensamos que pode haver de imortal em meio àquilo que possuímos? E se não possuímos a imortalidade, poderemos, eu vos pergunto, comunicá-la às coisas? Aquilo que pode acabar a qualquer momento não tem verdadeira existência, e podemos dizer muito razoavelmente que não existe mesmo quando existe. Mas, pressupomos que nossa duração seja eterna e que tão logo as coisas perecem deixam um sucessor – tão logo uma vai embora, outra toma o seu lugar. Ao invés de deixar nossa alegria morrer com a primeira, e encerrá-la junto em sua tumba, nós fazemos com que ela [nossa alegria; ndt] passe para uma nova coisa. Nós sequer nos damos o trabalho de verificar a sua condição e os seus defeitos, mas acreditamos naquilo que frequentemente se vê acontecer, que uma grande sucessão cai nas mãos de uma pessoa imperfeita, que ela [a sucessão; ndt] é concedida a um manco, a um surdo, a um cego. Usamos igualmente das coisas, chamando-as para tomar posse de nossa alegria. Não há nenhuma lei que prive um doente de uma herança que lhe diz respeito. Quando os bons dias de Jó passaram  e sua prosperidade morreu – para nos servir de exemplo –, o que aconteceu a ele, eu vos pergunto? Não somente a pobreza, mas a extrema miséria. Depois que a Fortuna  caiu sobre ele com todas as suas forças, que uma mesma ruína levou seus filhos e seus bens, que uma chaga universal cobriu seu corpo, ele se viu, para completar sua infelicidade, desprezado, ridicularizado por aqueles mesmos lhe deviam consolar e suportar; ele se tornou o refugo; ele foi o opróbrio do mundo; mas será que ele foi triste? Será que ele fez cara feia? Ele não perdeu nada de sua alegria, ele a manteve inteira diante de todos os presentes. O grande santo Zenão [trata-se de Zenão de Verona (c. 300 – c. 380), foi bispo de Verona e é venerado como confessor. Foi martirizado por volta do ano 380; ndt], encontrando-se acolhido por uma repentina e violenta desgraça, não acreditou que, com isso, havia perdido sua felicidade; ele apenas acreditou que ela havia mudado de matéria. Imitando esses Heróis, não coloquemos nada de nosso amor e de nossa alegria nas coisas que passam, mas transportemo-la de uma a outra; não nos liguemos em nada à Fortuna, mas giremos, como ela gira, da mesma forma que essa flor que segue o movimento do Sol. Lembremo-nos de que alguém assim pode, verdadeiramente, ser chamado de mestre, visto que a segue [à Fortuna; ndt] sem esperança, que se acomoda a seus movimentos sem se deixar levar por eles.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 175-178.

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