terça-feira, 24 de agosto de 2010

Terceira máxima - Capítulo VI

CAPÍTULO SEXTO
Um espírito constante e resoluto deve, a partir de então, se instruir a só amar firmemente aquilo que tem firmeza. Seja lá o que lhe chegue da Fortuna, ele deve receber isso com bom humor, não recusando a amargura mais do que a doçura, e recolhendo com um mesmo rosto seus favores e suas desgraças. Agir dessa forma com ela sem dúvida a colocará em desordem; nós a deixaremos confusa e envergonhada, pela maneira tão contrária a seu pensamento e sua expectativa como será aquele com a qual receberemos agradavelmente aquilo que ela nos apresenta de desagradável. Estando certos de que a resistência que opomos a suas vontades é o único ou, pelo menos, o maior meio que ela tem de nos afligir. É apenas através disso que ela pode nos causar alguma aflição. E preciso dar a ela o testemunho de que tudo o que queremos é o que lhe agrada, que nós só queremos isso. Certamente ela é capaz de perceber nossa tentativa de iludi-la através desse artifício; de forma que ela criaria outros desígnios maldosos contra nós, tornando esse artifício inútil. Se há coisas que mais devemos recusar são, sobretudo, aquelas que o mundo estima – as honras, as riquezas, as volúpias – aquelas coisas que agradam de início e que se recomendam a nós por uma bela aparência. É preciso devolver essas coisas a ela, da mesma forma que jogamos de volta uma bomba que nos é lançada. Na medida em que brincarmos com aquilo que nos vier de sua parte, nunca seremos tristes, nunca seremos infelizes. Brinquemos, portanto, com ela, se não quisermos que ela brinque conosco. Rejeitemos corajosamente seus presentes, tanto os que brilham como os que não brilham. Assim, evitaremos o desprazer de ver que ela nos pede de volta, cheia de cólera, aquilo que nos deu; que ela nos acusa de os ter guardado por muito tempo e toma isso como pretexto para nos tratar mal. Esses bens ligeiros e que valem pouco devem ser considerados por nós como muito levianos e não devem ser amados de forma alguma, já que também é preciso devolver-lhes a ela [à Fortuna; ndt] ao menor sinal que ela manifeste de os querer retirar de nós, evitando que ela se nos arranque das mãos. Eis um meio raro e infalível de ultrapassar sua malícia: coloquemo-nos no lugar da Fortuna, façamos contra nós mesmos tudo aquilo que seu rigor pode fazer conosco. Assim, nós a tornaremos incapaz de nos fazer mal, destruiremos o desígnio que ela poderia ter de nos trazer perdição. Aristipo [há dois personagens na Grécia antiga com este nome, ambos pertencentes à chamada Escola Cirenaica. O primeiro Aristipo foi discípulo de Sócrates e, como este último, se interessou quase que exclusivamente pela ética, e defendia o controle racional sobre o prazer. O segundo Aristipo, é neto do primeiro, e é conhecido como Aristipo, o Jovem. Segundo Eusébio de Cesaréia, este último foi quem sistematizou o pensamento do avô na chamada Escola Cirenaica; ndt] prevendo que ela queria não apenas lhe tirar as coisas que ele mantinha – e que eram delas – mas querendo também tomar sua vida como uso seu, e vendo chegar seus extorsionários - ele chamava assim os Piratas -, tomou o cuidado de jogar no mar todo o seu ouro, fingindo que ele tinha caído por acaso. Assim, foi sua perícia e não o seu ouro que salvou sua vida. Assim, para se tornar mestre da Fortuna tudo o que é necessário é se prevenir contra ela. Que cada um diga por si mesmo, num encontro semelhante a esse, aquilo que, então, ele disse, que vale mais que Aristipo perca as coisas do que elas causem a perdição de Aristipo. Na contínua guerra entre o Porquinho da Índia e a Víbora a vantagem é, ordinariamente, de quem ataca primeiro. O mesmo deve acontecer no caso do homem com a Fortuna: o agressor é o vitorioso. Se nós lhe deixamos voluntariamente tudo aquilo de que ela nos pode roubar, ela não terá motivo para se ligar a nós, ela não terá nada a fazer conosco. Se nós não desejarmos em nada as coisas agradáveis e não rejeitarmos as desagradáveis, ficaremos protegidos de seus ultrajes, teremos encontrado o meio de arruinar todos os seus empreendimentos e todos os seus esforços.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 178-180.

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