terça-feira, 24 de agosto de 2010

Terceira máxima - Capítulo VII

CAPÍTULO SÉTIMO
Mas, se o nome que ela [a Fortuna; ndt] carrega nos desagrada e é odioso para nós, se julgamos indigno de nós depender tão servilmente de uma potência cega e injusta tal como ela nos é representada pelo Paganismo; tudo o que nos resta fazer é abandonar os termos do uso corrompido, levantar o véu com o qual a fábula cubriu a verdade e, então, descobriremos que aquilo que os homens comumente chamam Fortuna é, para bem dizer, nada mais nada menos do que a potência de Deus, a ordem eterna e soberana sob a qual Ele submeteu todas as coisas. Assim sendo, não teremos dificuldade de lhe render uma inteira obediência, e de receber agradavelmente, sem desgosto e sem repugnância, tudo aquilo que nos vier de sua parte. E, eu vos pergunto, por que deveríamos nos proteger? Se, como diz o vulgo, o trabalhador é mestre em sua casa e pode fazer, nela, aquilo que melhor lhe parecer. Deus é mestre no mundo, visto que essa é a sua casa, e no entanto tão frequentemente sofreu com nossas vontades desordenadas. Não seria o caso de, de vez em quando, nos submetermos às suas ordens que são tão justas? Ninguém nunca as recebeu com uma perfeita submissão ou ficou pronta a executá-las tanto quanto Abraão. Tendo recebido a ordem de Lhe sacrificar seu próprio filho, ele não hesitou em nada; ele Lhe ofereceu com a mesma alegria que ele o recebeu dEle; ele o teria degolado tão tranquilamente quanto já degolara um cordeiro; e não teve nenhum escrúpulo de parecer impiedoso por ser fiel. Não nos surpreendamos. Ele era tão firme no seu desígnio de agradar a Deus sobre todas as coisas; o zelo e a fé o possuiam de uma maneira tão forte e preenchiam de tal forma o seu espírito;  que não havia em si lugar para a dor; ele não foi capaz disso e podemos seguramente dizer que somente Deus percebeu isso, visto que foi Ele quem teve o cuidado de salvar aquilo que esse pai tão resoluto estava a ponto de perder, e que, para poupar uma vítima tão cara, sub-rogou ele mesmo uma outra. Assim, esse excelente servidor deixou seu amor e sua humanidade ceder a seu dever; e por um sacrifício novo que conferia ainda mais mérito à sua perfeita intenção no caso do primeiro [sacrifício; ndt] ele imolou todos as suas ternuras à sua obediência. Que isso nos ensine o quanto é necessário que sejamos obedientes a tudo o que Deus nos ordena, e com que respeito e com que submissão devemos receber tudo aquilo que Lhe agrada nos enviar. Consideremos o presente pela dignidade da mão que no-lo concedeu, e tenhamos como caras as coisas que vêm dEle pela simples razão que elas vêm dEle e que é Ele quem no-las dá. Pensemos que, do princípio de todos os bens, só pode vir o bem; que de Suas mãos só podem cair coisas excelentes e preciosas, visto que Suas mãos são cheias de jacintos, assim como fala o Sábio [refere-se a Salomão; ndt]. Por Suas mãos, a dor, a pobreza, a infâmia, perdem seu azedume e sua amargura; elas tornam o mal agradável para nós; elas conferem valor mesmo ao mal. Quem se lamentaria, eu vos pergunto, de ser bastonado por ouro? E quem não quereria que se lhe jogassem pérolas como se fosse pedregulhos? Seus bastões, semelhantes àqueles com os quais o agricultor bate a colheita, só caem sobre nós para o nosso bem; e Seu amor não deve apenas nos fazer suportar Seu rigor, mas deve ainda torná-lo caro a nós. Há glória no ser bastonado por tão ricas varas; um tão nobre suplício é menos uma aflição do que uma recompensa; é menos um estigma do que uma honra. Com a consolação, ele nos traz também alegria, e é por isso que o Sábio chama jacintos as pedras preciosas que estão nas mãos de Deus, por causa da soberana virtude que elas têm de fazer o coração gozar de alegria. Certamente, tudo o que há de mais insuportável na vida é capaz de nos agradar e nos encantar quando vem dEle. Nada Lhe é mais próprio e natural do que fazer o bem; podemos mesmo dizer que nisso se encontra Sua arte e Sua principal profissão, aquilo onde estão Suas mais poderosas inclinações e Seus mais fortes hábitos. Os grandes pintores tentar mostrar a perícia de seu pincel ao pintar um réptil estranho, ou um inseto hediondo, muito mais do que pintando uma figura qualquer ordinária e mais agradável. Deus gosta, também, de produzir Suas mais excelentes operações valendo-Se de temas tristes e doloridos; e é nisso que Sua bondade trabalha mais, ainda que não pareça. Assim como a beleza da arte consiste principalmente no se esconder, também os efeitos de Sua graça são maiores quando são mais secretos e não podem ser vistos de fora. Depois disso, será que poderemos duvidar que é mais agradável receber aflições do que a retribuição de Seu amor? Poderemos duvidar que é Sua bondade que nos envia as aflições e não a Sua cólera? Além do mais, cuidemos bem de não amar constantemente as coisas que não têm constância; lembremo-nos que temos que nos manter firmes nas mudanças da Fortuna e devemos mostrar o mesmo rosto a seus maus tratos e a seus favores.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 180-184.

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