quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Primeira máxima - Capítulo V

CAPÍTULO QUINTO
Se a Fortuna nos expõe aquilo que ela tem de mais caro e de mais raro, se ela nos abre todos os seus tesouros e nos concede a liberdade de escolher o que nos agradaria mais possuir, aquilo que, sendo escolhido, nos obrigaria necessariamente a parar sem nada poder pretender para além disso; todavia, com essa vantagem que ninguém nos poderia arrancar, e que ela nos concederia para sempre, ao invés de escolher todas as outras coisas, não poderíamos conservar nem mesmo aquela escolhida, estaríamos certos de perdê-la. Não há dúvida que nós nos apegaríamos a esta única coisa e preferiríamos o contentamento de uma posse segura ao desprazer de uma perda inevitável. Eu vos pergunto, que outros bens como os do espírito podem se gloriar desse excelente privilégio de não perecer conosco, de só cair com nossa queda? Não seria um abuso extremo escolher mais aqueles bens cuja perda nos causa mais dor, do que aqueles bens cuja aquisição nos traz alegria? Não se verá um homem sábio ornamentar-se de roupas estranhas que lhe poderão ser retiradas. Para falar de forma saudável, tudo aquilo que não está absolutamente à nossa disposição não é para nós. Que razão temos para acreditar que o uso de um bem nos faz adquirir sua propriedade? Sem dúvida, é preciso um título [de propriedade; ndt] melhor [do que o simples uso]. A vida de nossos pais e do resto das pessoas que nos são caras, as riquezas, aquilo que a Fortuna nos empresta, aquilo que recebemos da Natureza, a saúde, a força, a boa disposição, e semelhantes coisas, tudo isso é muito pouco para nós, e não podemos nem mesmo dizer que nossa mão pertence ao nosso braço e que nossos dedos pertencem à nossa mão, visto que além de uma infinidade de acidentes capazes de nos fazer perdê-los, eles podem, a qualquer momento, cair sob os ferros de um inimigo. Não temos, portanto, nenhum direito de considerar esse tipo de bens como se eles fossem nossos; pelo contrário, sabendo como sabemos que eles são de outros, não devemos nos obstinar em retê-los, e menos ainda depositar neles nossa afeição, já que ordinariamente cada um ama aquilo que é seu e tem por indiferente aquilo que é dos outros.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 143-145.

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