CAPÍTULO TERCEIRO
O sábio, querendo nos fazer ver, através de um exemplo ilustre e natural, como é certa a instabilidade das coisas, nos mostra como as peças que compõem o Universo estão num movimento perpétuo e giram sem cessar em seu círculo [no original latino, Nieremberg se refere ao livro de Eclesiastes: “Sapienter, mundi membra, monet sapientissimus Ecclesiastes, gyrare, & in circulos suos reverti, ut rerum inconstantiam summan, id est, constantem monstraret”; ndt]. Não é suficientemente claro para nós dizer que as coisas não têm nada de mais constante do que a própria inconstância, que elas mudam a todo momento e que elas não têm nada de firme? Desta máxima indubitável é preciso tirar este preceito salutar: apenas o que é permanente deve ser objeto de nosso amor. Consideremos um círculo que gira e veremos que tudo se move nele, exceto o centro e o próprio movimento, visto que, sendo [um movimento; ndt] circular, ele permanece sempre no mesmo espaço e não muda de lugar: assim, a terra em torno da qual giram tantos globos é imóvel e não se deixa levar por nada de sua [dos globos; ndt] agitação. Este ordinário e contínuo fluxo das coisas que, para poder dizer de forma mais ingênua, imaginamos como se fosse uma roda que está entre as mãos da Fortuna e que ela governa soberanamente, só tem um ponto no meio que está em eterno repouso. Se nos reduzirmos a este ponto, encontraremos uma tranquilidade perfeita que não pode ser encontrada em lugar algum; o movimento e os problemas não irão chegar até nós. E por mais que nos pareça estar num lugar muito pequeno, estaremos, na verdade, em um grande espaço, onde nos será permitida uma grande expansão. Será preciso nos explicar melhor para entender o que é esse ponto? É o espírito universal que conduz e governa esta soberana firmeza. Se não nos é possível chegar até a Ele, esforcemo-nos, pelo menos, de nos aproximarmos. As partes mais próximas do ponto são aquelas que se movem menos, como se fizessem um giro menor. E se elas nunca subissem para o alto da roda, se elas nunca descessem para o ponto de baixo, elas não correrão nunca o risco de tocar a terra. Vede, portanto, a vantagem que existe em se manter nessa mediocridade [mediocria, em latim, não tem exatamente o mesmo significado que a palavra mediocridade tem para nós, hoje. Trata-se de um conceito clássico: o do meio-termo, ou da indiferença, muito comum à segunda escolástica jesuítica; ndt]? Nisso há também honra e ninguém ignora que o meio seja um lugar de dignidade, visto que a virtude mesma se aloja ali. Mas, pelo contrário, que honra, que segurança poderemos pretender nas outras partes [da roda; ndt]? Nelas, a Fortuna perverte a ordem, colocando no alto o que deveria estar em baixo; ela gira a roda, ela nos expõe à infelicidade infalível de ficar esgotados pelo fardo ou de ser dilacerados por espinhos e pedregulhos. Depois do centro, a única coisa que há de firme é o movimento, porque, não tendo fora de si termo aonde possa chegar, ele se move todo em si mesmo e tão continuamente que nada o consegue parar ou impedir. Um círculo que gira foi o tema dessa demonstração; e como esta é a imagem mais natural da instabilidade das coisas do mundo, um grande espírito acreditou que não haveria forma melhor para representar isso, nomeando-o círculo onde nada mais há de firme e de seguro além do movimento mesmo [no original latino, Nieremberg escreve: “Argute hanc faciem rerum labentium, circulum dixit Helias Cretensis, quarum sola consistit inconstantia”. O “grande espírito” a que se refere Louys Videl é Helias Cretense, como era conhecido por seus contemporâneos o averroísta Elias Del Medigo (c. 1458 – c. 1493), que exerceu grande influência sobre a obra de Pico della Mirandola e de outros pensadores neo-platônicos e humanistas, no século XV; ndt].
NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 171-173.
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