quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Reflexões - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO PRIMEIRO
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REFLEXÕES
SOBRE a Máxima precedente

CAPÍTULO PRIMEIRO
No entanto, como a Fortuna se crê muito fraca para conseguir abalar a nossa firmeza, ela emprega nisso um esforço a mais, e conta ainda com socorro e ajuda para aquilo que ela não consegue sozinha. De fato, teremos muito menos trabalho se o combate acontecer em nossa casa, do que teríamos se fosse em outras casas. Nossos males não serão mais tema para exercitarmos nossa constância do que os males das pessoas que nos são mais caras. A experiência ordinária ensina que, depois de ter se defendido contra nossas próprias calamidades, ela [a Fortuna; ndt] se rende à compaixão que temos pelas calamidades dos outros. É sobretudo isso que há de excelente na vida do sábio, que sendo de extrema utilidade para todos não se aplica a uma vida escondida, mas ele se faz servo de muitos e comunica a todos as vantagens que tem, fazendo-se um tutor público que se vale de sua sabedoria. E como sua vida é uma perpétua matéria usada para a manutenção da vida da Fortuna, eles [os sábios; ndt] subsistem muito mais por seu apoio do que por suas próprias forças. Portanto, é preciso considerar seriamente a maneira como ele se deve conduzir nessa importante ocasião; além de verificar se, sem violar a dignidade de sua virtude, ele pode testemunhar abertamente que o infortúnio de outra pessoa lhe toca. Esta demonstração exterior lhe é verdadeiramente permitida; e ele pode, ao encontrar uma pessoa afligida, se manter firme sem tristeza; mas que ele tome muito cuidado para que aquilo que muda o seu gesto e o seu rosto não altere ou perturbe em nada a tranquilidade de seu espírito; ele pode aparecer com um rosto abatido, mas ele deve manter seu espírito firme. Em meio a lamentações e lágrimas, ele deve conservar sua alegria e se defender da tristeza com tanto mais cuidado quanto normalmente se tem para se proteger de um mal contagioso e mortal. E mesmo estando protegido de todas as expectativas da Fortuna, é preciso que ele lhe faça a guerra; mesmo que ele já a tenha vencido em sua casa, é preciso lutar para vencê-la em outros terrenos e levar para todos os cantos os sinais de sua vantagem sobre ela. Se ele achar que não é capaz de comunicá-los [os sinais de sua vantagem sobre a Fortuna; ndt] aos outros, que recorra pelo menos ao artifício de levar algum alívio a um infeliz derrubado pela dor, que, suspeitando de seu desígnio sobre ele, se intimida já no início e mal consegue sofrer sua [da Fortuna; ndt] presença, achando dura e má a consolação, antes mesmo que ele a tenha apresentado. Alguém disse [no original latino, Nieremberg afirma: "Tzetzes ait, benefaciens hominibus, undequaque demetens malitiam". Trata-se, portanto de João Tzetzes (1110-1180), poeta e gramático bizantino que viveu em Constantinopla; ndt] que, nesse encontro, um homem de bem é um fardo pesado. Quem é que concorda com isso, eu vos pergunto, se não é exatamente aquele que é tão miserável a ponto de não sentir sua própria miséria? Certamente é mais razoável dizer que aquele não seria uma sobrecarga cuja habilidade é tal a ponto de livrar um espírito daquilo que o incomoda, cujos cuidados o descarregam daquilo que lhe pesa e agem com o máximo de eficácia exatamente quando parecem ter o máximo de amargura. O golpe que elimina o sentimento é mais perigoso, sem dúvida, do que aquele que causa a dor. E se, de alguma maneira, coincide com diminuir nosso mal colocando-o a descoberto, dando-o ao nosso conhecimento, não seria então mais justo louvar bastante a virtude, de quem nos vem um tão bom ofício? E não devemos gritar: “Raro e soberano remédio contra enfermidades humanas, que é tão salutar mesmo para quem te acha aborrecido, que bens recebemos de tua assistência? Tu a dispensas a teus próprios inimigos, tu curas aquele que resiste a ti; tu não desdenhas te comunicares, pelas mãos de pessoas de bem, para os malvados, de quem o contágio nunca sujou tua pureza”. Em verdade, é a ela que é preciso aplicar aquilo que alguém disse de um bom Príncipe [no original latino, o autor parece se referir a São Venâncio Fortunato (c. 530 - 600/609), que foi poeta e compositor de hinos latinos, além de ter sido bispo de Poitiers; ndt], que ele sustentava os enfermos com seu poder, que ele os esclarecia com seus conselhos, e que ele recebia em suas mãos aqueles que haviam caído das mãos da Fortuna. Um Legislador entre os Judeus disse, ainda que com outro sentido, que o Sábio tem mãos pesadas [no original latino, Nieremberg anota: "Hinc aliter intelligo, quam Philo, quod Iudaerum Legislator ait, sapientem graves manus habere". Parece tratar-se, portanto, do filósofo Fílon de Alexandria (25 a.C. - c. 50), que viveu no período do helenismo e se dedicou a interpretar os textos do Antigo Testamento à luz de categorias da filosofia grega; ndt]. Não nos surpreendamos em nada com isso, visto que é assim que ele sustenta, carrega uma infinidade de pessoas, aquelas para quem falta o sentido e a condução, aquelas que pesam demais para si mesmas; aquelas que a Fortuna persegue; os aflitos, os miseráveis, os imprudentes.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 184-187.

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