sábado, 21 de agosto de 2010

Primeira máxima - Capítulo IX

CAPÍTULO NONO
Aprendamos disso que, para amar essas coisas, não as podemos possuir. E ainda que pareça que elas nos pertencem de forma absoluta, lembremo-nos que sua dona será sempre a Fortuna. Verdadeiramente, ela sofre quando nós usamos de suas coisas, mas ela se reserva sempre a propriedade de tudo [o que nos empresta; ndt]; ela é uma criança, por isso não pode transmitir nada de seu. Quando ela nos tiver dado todos os seus bens, ela não deixará de sempre ter o direito de as retomar para si, a doação será anulada e, segundo os termos da lei, será preciso rescindir o contrato. Ela é menor de idade – é o que parece quando consideramos seus jogos e brincadeiras – ela dá e toma com a mesma mão, como as crianças, disse um Filósofo [o texto latino faz referência a um certo "Philippus Abbas"; segundo consta, trata-se provavelmente de Felipe de Harveng, que foi abade em Notre-Dame de l'Aumône (Nossa Senhora da Esmola), abadia cirteciense. Era arquidiácono de Liège em 1146, quando Bernardo de Claraval solicitou sua companhia para pregar a cruzada na Alemanha. Não há muitos dados acerca desse personagem. Sabe-se, porém, que em 1179 ainda era vivo (cf. Migne, 1855, p. 566); ndt]. Além do mais, qual a segurança que podemos ter de nos apoiar em muletas quebradas? Não seria uma loucura nossa querer construir nossa felicidade de maneira tão frágil e ruinosa? Teremos, diante disso, apenas o desprazer infalível de ver não apenas nosso edifício desabar em ruínas, como também de o ver caindo sobre nós e nos encontrando destruídos. E, para bem dizer, não seria estranho que tendo a luz para reconhecer isso, nós não tenhamos capacidade de resolução suficiente para evitar que isso aconteça? Nós nos tornamos dessa forma tão culpáveis de nossa infelicidade quanto de amar aquilo que nos causa a perdição e o engano. Que marca maior de nossa extrema fraqueza poderíamos mostrar? Quando alguém se lamenta da infidelidade da Fortuna, coloca juntas duas coisas que são muito contrárias entre si – ter conhecido, ter sabido que ela é publicamente enganadora e, no entanto, ter se fiado dela. Se, ao menos, esse alguém fosse capaz de pedir desculpas por um dos dois erros, ele seria menos afligido e, por isso, menos condenável. Mas, quem, vendo perecer as coisas que amou e que não ignorava serem caducas e perecíveis, não sente vergonha de ter ligado a elas sua afeição e desprazer de as ver perdidas? Quem estaria tão pouco à vontade a ponto de ser desenganado da opinião que tinha antes tão solidamente? Porque esta é a maldade da cobiça: nos enganar mesmo naquilo que conhecemos com mais certeza. Que estranha contrariedade! Nós nos surpreendemos  com o fato de que as coisas perecem, acreditando que sua duração é uma milagre; e a admiração que ela nos dá vem da segurança que temos de sua infalibilidade. Por que será que sua antiquidade faz com que sejam consideradas com respeito religioso? Quando, ordinariamente, elas são agradáveis mesmo é quando são novas. Isso só pode ser porque, sendo de sua Natureza serem frágeis e caducas, nós achamos que é raro e maravilhoso quando elas ultrapassam os esforços do tempo; e começamos a achar mesmo que sua duração é uma novidade que lhe aumenta o preço e o valor. Não há nada de eterno no mundo. A Fortuna que reina no mundo soberanamente produz nele constantes mudanças, constantes revoluções. Ela submeteu tudo à alteração e à vicissitude; e nós aprendemos pela experiência que não apenas os anos, os meses, os dias, em nada se parecem uns com os outros, ainda que sejam filhos de um mesmo Pai, como também quase os instantes não têm o mesmo rosto e são diferentes uns dos outros. Depois disso, é preciso se perguntar se há alguma coisa sob o Céu que possa ter o direito de pretender a eternidade. Não haveria razão em se afirmar que, se há alguma coisa de longa duração, ela é de Natureza mais excelente que as demais? E, como aquelas coisas que são raras e singulares são tanto mais estimadas, por isso mesmo elas se aproximam da Divindade, que é rara e singular, que é imortal. Assim, honramos muito mais aquelas coisas que a antiguidade consagrou, porque, nelas, descobrimos alguns traços da excelência de seu princípio, descobrimos que elas têm relação com ele, na medida em que ele é singular e imortal [Nieremberg se refere a Deus,apesar de o tradutor ter usado minúsculas; ndt].

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 152-155.

Referência:
MIGNE, M. L'Abbé. Nouvelle encyclopédie théologique, ou nouvelle série de Dictionnaires sur toutes les parties de la Science Religieuse, offrant, en français et par ordre alphabétique, la plus claire, la plus facile, la plus commode, la plus variée et la plus complète des théologies. Ces dictionnaires sont ceux: de biographie chrétienne en anti-chrétienne, des persécutions, d'éloquence chrétienne, de littérature id., de botanique id., de statistique, id., d'anecdotes id., d'archéologie id., d'héraldique id., de zoologie, de médecine pratique, des croisades, des erreurs sociales, de patrologie, des prophéties et des miracles, de décrets des congrégations romaines, de indulgences, d'agri-silvi viti-horticulture, de musique id., d'épigraphie id., de numismatique id., des conversions au catholicisme, d'éducation, des inventions et découvertes, d'ethnographie, des apologistes involontaires, ds manuscrits, d'anthropologie, des mïstères, des merveilles, d'ascétisme et des invocations a la Vierge, de paléographie, de cryptographie, de dactylologie, d'hiéroglyphie, de sténographie et de télégraphie, de paléontologie et de cosmogonie, de l'art de vérifier les dates, des confréries et corporations, et d'apologétique catholique. Publiée par M. L'Abb. Migne, éditeur de la Bibliothèque Universelle du Clerge, ou Des Cours Complète sur chaque branche de la Science Ecclésiastique - Tome Vingt-Troisième: Dictionnaire de Patrologie. Paris: J.-P. Migne, Editeur, 1855.

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