sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Primeira máxima - Capítulo VII

CAPÍTULO SÉTIMO
Há, portanto, essa diferença entre as coisas que nos pertencem e aquelas que dependem da Fortuna: aquelas são livres e essas não o são. É por isso que se quisermos nos conservar essa rara vantagem de só depender de nós mesmos, devemos ter por indiferente aquilo que não está em nosso poder. De outra forma, certamente não conseguiríamos evitar nos tornar escravos; nossa paixão será nossa servidão; ela será o título segundo o qual ficaremos inteiramente no poder de outros. Todavia, nós nos abandonamos, sem discrição e sem escolha, ao amor das coisas que não nos pertencem; nós nos submetemos a esses escravos e não temos vergonha de fazer deles nossos mestres. Nisso, nós nos parecemos com o dissipador que, tendo coberto a cabeça de seu cavalo, o deixou ir ao acaso, deixando que ele fosse para onde a sorte o levasse. Nós fazemos a mesma coisa; por uma cegueira voluntária, tiramos de nós mesmos os meios para escolher nossos mestres, de tal forma que se pode dizer de nós aquilo que um santo disse de um cego abandonado à própria sorte [no texto latino, Nieremberg se refere a Santo Enódio: “Perinde caeci mancipamur rebus, ut nec herorum optionem velimus. Dixerim & de libidine nostra, quod de libidinoso caeco beatus Ennodius: Nil videt, & rectum servat iter scelerum”. Magno Felix Enódio (474-521), nasceu em Arles e morreu em Pávia. Foi bispo de Pávia, sucedendo o bispo Máximo de Pávia, a partir de 511; ndt], que ele nada vendo, pelo menos não deixava de manter firme o reto caminho do pecado. Sem dúvida, nascemos para comandar e, por um miserável e cruel instinto de nossa cobiça, que nos domina, que nos cega, nós seguimos um caminho reto em direção à mais vil, à mais vergonhosa de todas as servidões. E, certamente, tornando-nos servidores de servidores, usurpamos indignamente – para nossa grande confusão – esse excelente título do soberano Pastor da Igreja; criamos nossa própria infâmia com aquilo que compõe a glória de sua humildade. Um grande homem disse muito sabiamente que aqueles que se ligam ao amor das coisas caducas e passageiras são os criados que servem a outros criados [no original latino, Nieremberg se refere ao Papa Simplício (c. 430-483); ndt]. Ser servidor dos servidores de Deus é, porém, estar no mais alto degrau da honra; mas é cair na mais baixa infâmia se tornar escravo dos escravos da Fortuna. Consideremos, eu vos peço, essa grande sequência de criados, que obedecem uns aos outros; vejamos esses diversos estágios da servidão; encontraremos no mais baixo nível justamente aqueles que são escravos dos bens. Cada um deles é obrigado a reconhecer pelo menos dois mestres – um de casa e outro de fora. O primeiro é o apetite sensual e brutal que, se tornando rebelde à Razão, e se sublevando contra ela, lança-a para fora de seu trono, e a entrega, junto consigo mesmo, ao mestre de fora, que é a Fortuna, que também é sujeita à sua própria inconstância e depende de seu próprio capricho. Mas, eis que é ainda pior quando impomos a nós mesmos essa servidão: nós fazemos isso voluntariamente, de nosso bom grado. Os maus criados, frequentemente, executam com lamentos as ordens de seus maus mestres. Nós, ao contrário, obedecemos sem resistência e sem dificuldade alguma ao nosso apetite corrompido ainda que seja para a nossa tristeza, para o nosso prejuízo; vendo que é ele quem nos cega e nos fazer correr atrás desses bens estranhos e fugidios. 

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 147-149.

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