CAPÍTULO QUARTO
Que seja esta, portanto, a primeira Máxima para o estabelecimento de nossa alegria: NÃO ESTENDER NOSSA VONTADE PARA ALÉM DE NOSSO PODER [no original latino, Nieremberg afirma: “Itaque prima lex tranquillitatis esto, compositio voluntatis, & facultatis”. Trata-se, portanto, de considerar, na obra, a palavra “poder” como “faculdade” ou “potência”; ndt]. Certamente, graças a isso, devemos ser extremamente exatos no estudo das diversas condições das coisas, e ter ainda mais atenção do que os Sacrificadores tinham quando consideravam as entranhas das vítimas, porque é disso que deveremos retirar o mais certo augúrio acerca de nosso bem ou de nosso mal. É preciso ver cuidadosamente se as coisas que se apresentam a nós são da mesma ordem daquelas que nós podemos verdadeiramente possuir; que vindo a perecer, perecem absolutamente para nós, ou se pertencem à Fortuna, sem nenhuma dúvida. Às primeiras, podemos confiar corajosamente nosso coração; mas devemos nos guardar muito bem de nos assegurar às outras. Saibamos que elas não têm pega nem fidelidade, tanto quanto quem no-las oferece [a Fortuna; ndt]; [saibamos ainda] que a alegria que vem dela [da Fortuna; ndt] está sempre misturada com alguma amargura, que suas mais belas rosas são cobertas de espinhos, que seu açúcar esconde veneno, e que ela, frequentemente, nos faz derramar lágrimas em meio às maiores prosperidades que dela [da Fortuna; ndt] nos vêm. Portanto, é de extrema importância para nós examinar de forma cuidadosa e rigorosa a natureza das coisas antes de nos metermos com elas. Aquelas que o mundo estima de forma mais elevada e que ele considera como suas mais raras vantagens, os acontecimentos felizes, o favor público, a reputação, as riquezas, as honras, o luxo, as volúpias, a saúde, a força, as outras graças do corpo, tudo isso deve ser estudado com cuidado particular, para saber de que lado está, e se pertencem ao espírito, à Natureza ou à Fortuna. Quando estivermos certos de que elas dependem da Fortuna, devemos lhes fechar, logo de início, nosso coração, de temor que elas desordenem nossa Vontade e lhe façam se estender para além de nosso poder. Por que queremos tanto admitir em nós aquilo que deve ser a causa de nossa ruína? Aquilo que, por menor que seja o mal que se espera, nos arranca aquilo que temos de mais precioso, o repouso e a paz do espírito? Este é o cuidado ordinário que temos ter: não receber criado algum sem a segurança de sua fidelidade, a fim de não receber em nossa casa ladrões e assassinos. Será que abriríamos nosso coração aos desejos imoderados que só podem trazer desordem para dentro dele? Que loucura seria querer possuir o que não apenas não seríamos capazes de manter, como também que não seríamos capazes de ter, o que não apenas não consegue parar, como também é absolutamente incapaz de parar! A história da Ásia nos fala de um homem – de quem ela [a história; ndt] nos quer ensinar mais cuidadosamente a virtude que o nome, e que é necessário que tenhamos sempre diante dos olhos como um exemplo excelente da Verdade dessa doutrina: ele possuía uma tranquilidade de espírito tão elevada, ele foi mestre de sua alegria de tal forma que ele a conservou soberanamente em meio às mais violentas tempestades da Fortuna, e recebeu todos os traços de sua inconstância e de sua cólera, sempre com um rosto sorridente e igual [no texto latino, Nieremberg fala de um certo bárbaro do Arábia: “Abiecit ista dominia, sive famulatum dominantem Barbarus quidam Arabiae, dominus proinde suae laetitiae, hilari semper, & corridenti vultu, placidus ad omnem gestum fortunae”. Não encontramos referência a este personagem; ndt]. Como lhe perguntassem por que ele nunca fora triste, ele respondia, eu não possui nada cuja perda me pudesse afligir. Será possível dizer mais claramente que ele nunca se ocupou das coisas que dependem da Fortuna e que, nunca as estimando, cria nada perder perdendo-as?
NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 141-143.
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