sexta-feira, 23 de abril de 2010

Terceiro prelúdio - Capítulo V

CAPÍTULO V
Deus não tem nenhum tesouro como o têm os homens. O Mestre de todas as riquezas do mundo não possui nenhuma fora de si mesmo. Ele compreende, Ele encerra em si tudo o que pode haver de bens; Ele sozinho é todos os bens juntos. Sua felicidade é pura e não recebe nada de estranho, nada a compõe além dela mesma. A beatitude rejeita o luxo; ela é frugal, ela ama a simplicidade. É sobre isso que está fundada a Filosofia: na resolução que ela tomou de dar a um dos seus a glória de poder disputar a felicidade com Júpiter, porque ele não tinha necessidade de nenhuma outra coisa além de si mesmo. Será ainda mais adequado dizer que Deus basta a si mesmo; mas que, por mais imensa e infinita que seja a Sua riqueza, ela não é em nada superabundante, ela é, todavia, sem superfluidades. Tudo o que a compõe é necessário. Assim, o homem é suficientemente rico de si - assistido, porém, pela graça de Deus, fora da qual seria pobre no meio de todas as riquezas do mundo. Mas, há muito mais coisas de que ele não precisa. Ele tem muito de seu corpo; seu espírito sozinho lhe é suficiente. Julguemos, a partir disso, quão fácil é para ele se tornar feliz, visto que ele o pode ser não apenas sem o benefício da Fortuna, mas ainda sem as vantagens que vêm da Natureza. Que ele possa perder, se quisermos, uma boa parte de si mesmo, que separemos seus membros de seu corpo, que arranquemos suas mãos e seus pés, que o privemos das funções mais nobres dos seus sentidos, da ajuda da visão, ainda assim não arrancaremos nada daquilo que serve para torná-lo feliz; ele salvará dessa ruína a tranquilidade de seu espírito. Ele não deixará, depois de tudo isso, de ser inteiro. Seus olhos, seus pés, suas mãos, não são em nada necessários para a sua verdadeira perfeição. Eles podem muito bem lhe faltar, sem que a felicidade lhe falte. O que pertence à Fortuna não é em nada capaz de fazer a nossa alegria. O que podemos perder não pode, verdadeiramente, ser considerado como algo que nos pertence; porque, como um grande Santo disse [no texto latino, aparece a referência a São Próspero (c.390-c.465), que foi discípulo de Santo Agostinho; ndt], a sabedoria conserva seu bem, sem diminuição e sem dano. Tudo o que ela tem lhe vem dela mesma, ela não toma emprestado de ninguém. Esta foi a opinião de um Filósofo [o texto latino faz referência a um certo Automedón, poeta da antiguidade grega; ndt]: o cúmulo da felicidade é não dever a ninguém. Não teria ele mais razão em dizer que é não dever em nada à Fortuna, estando certos de que o menos feliz é aquele que lhe deve tudo o que possui, mesmo que possuísse o mundo inteiro? Seguramente, os que têm tudo dela podem muito bem dizer que nada têm ou que, pelo menos, que possuem muito pouca coisa. E podemos muito bem ser felizes sem a ajuda de outros, visto que não temos quase necessidade nenhuma de nós para isso, e visto que podemos muito bem nos servir apenas da metade de nós mesmos.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 75-77.

Terceiro prelúdio - Capítulo IV

CAPÍTULO IV
Que não sejam apenas os profanos a nos ensinarem a confiança que devemos ter na paz de espírito, visto que eles não nos poderiam dar exemplos e provas desta verdade tão excelentes quanto aqueles que temos da pessoa do grande Apóstolo [fala de São Paulo; ndt] que, sem outras armas, se comportou de tal forma que se glorificou: nem a vida, nem a morte, nem os Anjos, nem os Principados, nem as Potências, nem o tempo presente, nem o futuro, nem a altura, nem qualquer criatura que seja, nada o separou de Seu amor e de Sua Vontade, que ele elegeu sobre todas as coisas do mundo. Há certos bens da aparência que, porém, como uma coragem ordinária, não seriam capazes de lhe inspirar pensamentos tão altos, não seriam capazes de lhe fazer conceber desígnios tão grandes, não seriam capazes de levá-lo a querer combater as maiores calamidades da vida – a fome, a pobreza, os sofrimentos, a perseguição. Por mais poderosos e perigosos que sejam esses inimigos, eles não lhe pareciam dignos de que se ocupasse deles; ele os considerava muito abaixo de si, e os olhava com desprezo. Os perigos, os fracassos, as aflições, as dores e qualquer outro tipo de traços que a Fortuna utiliza nas suas mais cruéis vinganças não seriam suficientes para a sua ambição: ele queria abordar as forças do Céu, ele se opunha, ele desafiava todos os  exércitos dos Anjos; eu vos pergunto, com o quê? Apenas com a confiança que ele tinha em si mesmo, com a segurança que tinha em sua paz e em sua caridade. Como seu poder deveria ser grande! Como coisas desarmadas tiveram tanta força para resistir tão corajosamente à Fortuna, ao mundo e ao Céu! Mas, ele não quis permanecer somente nisso, ele disse ainda mais altamente que não havia nenhuma criatura capaz de separá-lo de Seu amor. Talvez ele quisesse falar de criaturas inferiores e baixas. Não, não. Ele nomeou claramente as mais altas, as mais excelentes: os Anjos, os Principados, as Potências – toda a força e todo o ornamento do céu. Que coragem é essa capaz de desafiar coisas ainda maiores, capaz de buscar novos inimigos e desejar inimigos mais fortes? Vedes até aonde vai a paixão daquele que ama perfeitamente: ele desafia o que não é, tendo já vencido todo o resto. Alexandre [refere-se a Alexandre, o Grande; ndt] não conhecia nada superior a ele, mas tão somente a sua ambição. Este mundo, não lhe parecendo suficientemente grande para suas conquistas, lhe motivou o desejo de novos. Assim também, este Herói [refere-se a São Paulo; ndt], não tendo nada além de sua paz como força, não considerou este mundo como um justo inimigo; ele quis um outro mais digno de seu valor, tão forte ele se considerava e tão assistido por Deus que combatia com ele. Certamente também, com uma vantagem tão rara, ele se considerava maior do que tudo pode ser, tudo que tudo é, tudo que tudo não é, de tudo que poderia ser, mais do que este mundo e um outro mundo ainda. Este grande Discípulo do Céu era poderoso e rico de si.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 73-75.

Terceiro prelúdio - Capítulo III

CAPÍTULO III
A Felicidade se conduz e se regra inteiramente pela Vontade. Pode-se dizer que ela caminha sob seu ensinamento, e que ela embarca em seu navio sem nenhum bem ou honra. Ela não vai acompanhada de nada que esteja fora de nós. É uma verdade da qual podemos nos glorificar: que, na passagem que temos que fazer neste mundo, somos abundantemente supridos de tudo o que é capaz de compor a felicidade. Trazemos suficientemente conosco o equipamento necessário para nossa alegria. Sem dúvida, Deus e o homem são suficientes, sozinhos, a si mesmos: cada um é suficientemente rico de si mesmo; e o mais rico é aquele que se substitui a todas as coisas, que conserva sua riqueza e sua felicidade na posse de sua pessoa. A cidade de Mégara [antiga cidade-estado grega, situada no istmo de Corinto; ndt], após ter sido tomada por Demétrio [a tomada de Mégara por Demétrio I (337 a.C.-283 a.C.), da Macedônia, se deu em 307 a.C. Demétrio I, conhecido também como “Demétrio Poliorcetes” (que significa, em grego, o tomador de cidades) foi um rei macedônio, filho de Antígona Monoftalmo; ndt], foi palco de uma cena importante: tendo Demétrio um cuidado particular em devolver a Estilpón [Estilpón de Mégara foi discípulo de Diógenes, sobre quem já comentamos em nota anterior, é um dos representantes mais importantes da chamada Escola Megárica, que criticava a filosofia platônica, especialmente no particular sobre a imitação que a realidade sensível faz do Ser; ndt] tudo aquilo que a injúria da guerra poderia ter tirado dele, ouviu deste Filósofo: eu não perdi nada. Belas palavras, certamente, e que teriam toda a sua dignidade na boca de um Cristão; mas que tiveram pouca dignidade, tendo sido pronunciadas por aquele que se encheu de honra ao recusar as honras que lhe foram oferecidas por um grande Príncipe e que fez uma obra-prima de si mesmo, tendo corrigido suas más inclinações pelo estudo da sabedoria. A Natureza teria sujeitado este excelente homem a um dos mais perniciosos vícios, que podem destruir o conjunto do corpo e do espírito, pela simples corrupção da boca. Como se ela tivesse como desígnio colocar à prova a força da Virtude, e verificar do que é capaz uma alma alta e generosa; ela lhe suscitou este perigoso adversário, ela o colocou nas mãos com um poderoso inimigo. Certamente, ele não creu ser suficiente reprimi-lo e enfraquecê-lo [está falando do vício], ele o venceu absolutamente no início, ele obteve uma inteira vitória sobre o vício, ele apagou completamente esta mancha de sua vida a tal ponto que, nunca mais, puderam reconhecê-la. Bias [trata-se de um dos Sete Sábios do Oriente, nascido em Priene, hoje Güllübahçe, na Turquia. Conta a história que, quando Priene foi sitiada pelos persas, Bias permaneceu imóvel, enquanto todos os cidadãos tentavam proteger suas riquezas. Perguntaram-lhe, então, qual era a sua riqueza, e ele respondeu: “a minha riqueza está na minha cabeça”; ndt], este Filósofo tão grande e tão Real, foi o único dos Cidadãos de Priene que não quis salvar nada quando sua cidade foi tomada, ele não carregou nada, ele saiu vazio e nu, dizendo que ele trazia todos os seus bens consigo. Ele sabia que não há nada de mais cômodo, que cause menos aflição para carregar, do que a felicidade. Outro, que poderíamos nomear como um segundo Aristipo [há dois personagens na Grécia antiga com este nome, ambos pertencentes à chamada Escola Cirenaica. O primeiro Aristipo foi discípulo de Sócrates e, como este último, se interessou quase que exclusivamente pela ética, e defendia o controle racional sobre o prazer. O segundo Aristipo, é neto do primeiro, e é conhecido como Aristipo, o Jovem. Segundo Eusébio de Cesaréia, este último foi quem sistematizou o pensamento do avô na chamada Escola Cirenaica; ndt], por causa da conformidade de seus sentimentos. Em uma situação muito parecida, ele chegou nu em Rodes, após um naufrágio, e, diferentemente de todos aqueles que estavam com ele que lamentavam ter perdido tudo, ele testemunhava alegria, como se tivesse salvado tudo, visto que ele havia salvado sua pessoa. Quer dizer que o sábio se encontra de pé e firme em meio às maiores tempestades que o pudessem atingir e, bem longe de o abaterem, elas não têm a força sequer de o sacudirem. Ele é para si mesmo um porto seguro contra todas as tempestades da Fortuna; e, verdadeiramente, aquele que é agitado pelas águas do mar e está em perigo de naufrágio pode se garantir de que seus bens não correm perigo, de que ele tem, como se estivesse em terra firme, tudo o que há de mais precioso, e de que não perderá nada, na medida em que não perder a tranquilidade de seu espírito. Aquele que sabe conservar esta tranquilidade de espírito, conserva, com isso, sem dúvida, tudo o que lhe é necessário, tudo o que precisa e merece cuidado; está coberto contra todos os tipos de inconvenientes e desgraças; não recebe nem as ameaças do Céu irritado nem as fúrias mesmas do inferno; não tem medo de nada que eles lhe possam fazer. Não foi com outras armas que este Atleta audacioso, para não chamá-lo arrogante, Epícteto [sobre o qual escrevemos em nota anterior], que desafio a Fortuna tão frequentemente, teve a segurança de desafiá-la nestes termos: Que todos os deuses juntos façam a guerra contra mim; que eles derramem sobre mim todos os traços de sua cólera e de sua vingança; eu não serei em nada atingido, eu não perderei nem meus bens nem meu repouso. Tudo o que há de mais terrível e de mais insuportável, os trabalhos, os perigos, as dores, a infâmia, a pobreza, tudo isso não conseguiria me incomodar. Minha alegria não será em nada abatida, minha tranquilidade não seria sequer perturbada. Elas estão em um lugar impenetrável, que está coberto contra todas as suas empresas e ridiculariza todos os seus esforços. Assim, certamente, pode-se dizer que, nesta ocasião, não há nada que faça guerra mais corajosamente do que a paz mesma. Sem mentir, aquele que tem a paz em si tem tudo o que lhe é necessário para não temer nada e para conquistar tudo. A paz permanece como maestrina em todos os combates da Vida. São as verdadeiras armas com as quais é necessário se defender contra a Fortuna. Não é necessário, em nada, aqui, que a cólera anime a coragem, mas sim que a alegria a anime. Nada nos é mais necessário para conseguir vantagem neste combate do que a paz e a moderação da Vontade.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 70-73.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Terceiro prelúdio - Capítulo II

CAPÍTULO II
Trata-se de uma verdade que não é necessário, de forma alguma, justificar que cada um ama mais aquilo que mais seu é; mais uma coisa nos pertence, mais ela nos é cara. E nada nos pertence a mais justo título do que aquilo que fizemos nós, que é fruto absoluto de nossa produção. Nós amamos, sem dúvida, todas as nossas obras; e a natural paixão que temos por elas é tanto maior, quanto mais se deve apenas à nossa indústria, e quanto menos somos obrigados à ajuda de outros. Se, portanto, a felicidade é o que cada um ama sobre todas as coisas, não seria preciso inferir disso que ela seja o que cada um tem de mais próprio? Que ela seja nossa produção pessoal e não das Riquezas, que não vem de nós, que não são nossa obra, mas puramente obra da Fortuna? Nós nos lamentamos, agora há pouco, do fato de ela ter tornado difícil para nossa aquisição as riquezas, de que ela colocou um abismo entre as riquezas e nós, afastando-nos delas com uma distância enorme, tão difícil de ser vencida. Mas, o que pensamos que foi feito por ela contra nós é, seguramente, para o nosso bem; ela o fez para nossa instrução. Assim, portanto, as riquezas estão longe de nós para que aprendamos a mantê-las distantes, como malvadas e perniciosas, de medo que, por um efeito que lhes é tão ordinário, elas nos alienem da razão, nos distanciem de nós mesmos. É ainda o mal que nos causam as delícias e as volúpias. Por elas, somos distraídos da jurisdição da Natureza, reviramos suas ordens e seus estabelecimentos, destruímos sua economia. Ela [a Natureza] fez as coisas exteriores para servir ao corpo, o corpo para servir à alma, a alma para servir a Deus. Esta excelente ordem é pervertida pelos desregramentos que chegam ao espírito. A paixão que temos pelas Volúpias arranca da alma a superioridade que tem sobre o corpo. Ela [a paixão] faz com que aquele que deveria apenas obedecer se comporte com a insolência de quem comanda e mestre absoluto do outro. O ardor com o qual abraçamos as riquezas é ainda mais perigoso e maléfico: ele sujeita o corpo e a alma, fazendo deles miseráveis escravos, entregando-os a um terceiro, a um metal abjeto e vil e, consequentemente, a tudo o que está fora de nós. Se, portanto, elas causam uma tão estranha desordem, afastando-nos de nós mesmos, e se nada é nosso senão aquilo que é propriamente nosso, como elas podem compor nossa felicidade, que é uma coisa propriamente nossa? Certamente isso nos ajuda a entender que elas só nos prometem coisas falsas, isso nos traz às claras a impostura das riquezas, e justifica ainda mais que, não somente a alegria verdadeira não consiste em possui-las, elas não conhecem nem mesmo o desejo. O que poderíamos dizer das Honras? Senão que elas estão ainda mais distantes de nós do que as Volúpias e as Riquezas, e que elas [as Honras] são ainda menos obra ou produto nossos; visto que, para guardar as riquezas, não precisamos da ajuda de ninguém, enquanto que as honras nos chegam por operação de outros, são a obra de quem no-las dá e não de quem as possui. É por isso que elas, assim como as Volúpias e as Riquezas, não podem compor nossa felicidade, que precisa ser nossa própria obra. Mas, ao mal que elas nos causam, ao nos afastar de nós mesmos, se ajunta um novo e ainda pior, quando, para que nos vinculemos bastante a elas, nos afastamos de Deus, comportamo-nos desgraçadamente, resistindo a Suas vontades. Ao nos tornarmos rebeldes Àquele a quem pertencemos, não tanto por Seus benefícios mas por Seu poder, caímos nessa deplorável loucura que é não nos submetermos às ordens de Sua suprema sabedoria. Eis o que produzem em nós as Honras, as Riquezas e as Volúpias que, por um extremado abuso nosso, acreditamos serem capazes de produzir a felicidade. Umas e outras nos desviam do caminho de obediência a Deus, corrompendo, no seu princípio, a mais excelente e necessária de todas as ciências.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 67-70.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Terceiro prelúdio - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO PRIMEIRO
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TERCEIRO PRELÚDIO
QUE cada um encontra, suficientemente em si mesmo, do que fazer sua alegria

CAPÍTULO PRIMEIRO
Eis, portanto, como tudo o que se chama felicidade não o é em nada e só carrega o nome. Eis como, frequentemente, é mais uma armadilha enganadora e perigosa, da qual a miséria mesma se serve para nos enganar. Eis como só é uma aparência e uma máscara que ela emprega para nos surpreender. É disso, certamente, que procede toda a nossa aflição, é desta fantasia e desta impostura que vêm nossas dores e tormentos. Não há ódio mais cruel do que aquele que se fantasia de amizade. Esta se vale do fato de que não se desconfia para golpear; e alguém disse a este respeito que a cólera que se esconde dá seu golpe, mas a que aparece perde a ocasião de dá-lo. Quem é o homem tão simples, eu vos pergunto, que não acha suspeita a segurança que seu inimigo lhe oferece? Os bens e as outras vantagens que o mundo estima e considera como os mais dignos de esperança e de desejo são muito mais armadilhas e traições que a Fortuna nos prepara, são muito mais astúcias e artifícios que ela coloca em prática para nos enganar. Ela nos apresenta esses bens e vantagens sob um especial e magnífico título de felicidade; mas, na verdade, esse título é uma cobertura para as desgraças que ela nos prepara em seguida; e que lhes é muito menos conveniente e mais inadequado, pois não há nada de mais ridículo do que se glorificar de vantagens que não se tem e que, consequentemente, não poderiam ser comunicadas a outros. As grandezas do mundo, as riquezas, as volúpias, se apresentam, se repartem a nós como verdadeiras causas de nossa felicidade; elas querem nos persuadir que são elas que a compõem; mas, a partir exatamente disso, elas nos asseguram do contrário, elas excitam nossa desconfiança; o seu próprio testemunho desmente e destrói o que ela pretende estabelecer. Somos, porém, frágeis e crédulos ao dar fé dela. E fazemos a mesma insanidade que seria não acreditar em um homem que fosse mudo e não no-lo dissesse ele mesmo. Se alguém em cólera nos batesse, acreditaríamos que ele estivesse brincando ou nos fazendo carinhos? Tomaríamos uma coisa tão rude e tão desagradável como um favor ou como uma injúria? As riquezas podem nos dar a tranquilidade que é o fundamento da alegria, ou podem ser consideradas como a alegria mesma, sendo, como elas são, eternas matérias de temor e de cuidado, e, sem dúvida, os meios mais ordinários de que se vale a Fortuna para nos causar aflições. Como é que aquilo que enche nossos cofres não pesará em nosso coração? Como uma coisa que ocupa, que cria impedimentos em nosso quarto, não criará impedimentos também em nosso espírito? E como ela não tornará escravo, por uma justa revanche, aquele que tem tantos cuidados em mantê-la bem guardada? Pelo contrário, é indubitável que aqueles que não têm riquezas, têm verdadeiramente e, com efeito, a felicidade; eles a têm em espécie, eles a têm, por assim dizer, contando com o tipo. Como é que as honras e as volúpias, que desregulam a nossa vontade, que a agitam incessantemente, poderão acalmá-la e torná-la tranquila? As honras, semelhantemente a certas carnes, nos incham mais do que nos satisfazem, irritam a ambição, lhe abrem um amplo caminho, justificam esta máxima de um Filósofo Cristão [no texto latino aparece a referência a Jorge de Pisídia, sobre o qual já escrevemos em nota anterior. A citação que aparece no original é em grego e é a seguinte: “Τό σαθρόν έυτέχημα ά νόθα κλέας. / Τώ ώ φρονάντε πάσαγή προεδρία. / Κοινή γό ή γή πρός θρόνας τέ, κό τάφυς.”, traduziremos em breve; ndt]: que a felicidade que produzem as honras e que procede da falsa glória que o mundo oferece é igualmente falsa e danosa. Mas que o sábio considerará toda a terra como a mais eminente sede da honra, visto que ela é igualmente feita para ser seu trono e sua tumba. Por mais doces e agradáveis que possam ser as Volúpias, elas nos incomodam e nos abandonam cedo demais, elas não seriam capazes de nos satisfazer. E, além do mais, esta é uma verdade constante e perpétua: a alegria só se forma da vontade, não outra matéria de que se componha a felicidade. Tal como é o estado da vontade, assim será, seguramente, o estado da alegria. Ela não poderá ser verdadeira, não nos satisfará se não vier de nós, se não for obra de nosso espírito. Uma das Províncias da Grécia, outrora, representou este mistério através de uma estátua da Fortuna abraçando o amor [o texto latino diz: "fortuna amplexante amorem", o que tira a dúvida sobre o verbo utilizado em francês - embrasser - que pode ser tanto traduzido por beijar quanto por abraçar, sendo mais comum na primeira acepção, hoje em dia; ndt]. Não seria isso dizer que a verdadeira felicidade deve ser nossa pura produção? Não seria isso dizer que ela é falsa e imperfeita se algo de estranho entrar em jogo? Não seria isso dizer que é preciso, necessariamente, que ela venha da Vontade?

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 64-67.

Segundo prelúdio - Capítulo IX

CAPÍTULO IX
Se alguém nos vem dizer que se nos estão sendo preparadas honras, que uma boa fortuna nos espera, que uma grande sucessão nos está chegando, nós o escutaremos com prazer; e mesmo que, de fato, ele nos impusesse esta notícia ou que ela fosse falsa, ela nos seria muito agradável. Não temos dúvida portanto de que as coisas não fazem nossa alegria, não nos é necessário apontar nenhuma outra justificativa que comprove como ela não vem delas, visto que todas essas honras, todas essas vantagens não serão reais e que só subsistirão apenas em nossa opinião. Se esta mentira nos desse contentamento, por que nossa razão não causaria o mesmo efeito? [aqui, Nieremberg, opõe razão à opinião; ndt] Por que a verdade não teria tanto crédito e autoridade sobre nós como a que damos a uma coisa imaginária e vã? Façamos, pois, aqui, por resolução e por sabedoria, aquilo que faríamos por fraqueza e imprudência. Aqueles que abusaram desta sorte e que se entretiveram dessas visões agradáveis, alegrem-se com ainda maior facilidade, abandonando todo seu crédito à impostura que faz sua alegria. Persuadimo-nos, sem dificuldade, daquilo que recebemos; não hesitamos em nada; o assumimos, de início, como constante; e só quisemos como caução a vantagem que nos foi prometida. Ser-nos-á, portanto, muito fácil conceber a alegria, as seguranças que nos dão, de que possuímos todos estes bens, possuindo aquilo que vale mais do que todos eles juntos, possuindo o meio infalível de produzir a felicidade; e esta alegria será tão mais justa que a causa dela é real e certa. Mas, quando ela não for mais, a notável vantagem que tivemos em acreditá-la como tal será, seguramente, bem digna de que não duvidemos em nada; é bem merecido que acrescentemos fé inteiramente.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 62-64.

Segundo prelúdio - Capítulo VIII

CAPÍTULO VIII
Nós lhes fazemos, no entanto, a injustiça de lançar sobre elas a causa de nossas infelicidades; nós lhes condenamos contra todo tipo de razão. E aqui nós também, como aqueles que não agravam seus crimes se desculpando, mas acusando os inocentes, e que se comportam como delatores para não serem cridos como culpáveis. Se não há nenhum motivo para atribuir a uma pintura os defeitos da mão que a fez e de tomar por ignorante o artesão, também não é razoável imputar às coisas que estão fora de nós o mal que elas não fazem, e que, na verdade, somos nós que cometemos. Não podemos imputar as desordens à vida que não vem, absolutamente, de nós. Tudo o que nos chega procede de nossa vontade, ela, sim, culpável e cúmplice. Como os furiosos e as crianças se machucam com o mesmo ferro com o qual querem ferir alguém, como eles só servem dele para a própria ruína, nós também recebemos danos de tudo aquilo de que nos servimos contra a Fortuna: tudo o que nela jogamos recai sobre nós, fazemos, por nossas próprias faltas, com que o antídoto se torne veneno. Certamente, apenas a nossa Vontade é criminosa: as coisas que estão fora de nós são não apenas inocentes, mas também nos são favoráveis; e podemos mesmo dizer que elas nos fazem o bem naquilo em que não são más. Seja lá de onde for que se as pegue, as coisas que estão fora de nós são tão unidas e iguais que não há nada que pare ou crie temor à mão. Nelas, a alegria se parece com a tristeza; elas não têm nem característica nem marca que as distinga umas das outras; e, sem dúvida, isto foi uma falsa visão de Epícteto [filósofo grego, que viveu entre c.55 a.C. e c.135 a.C. Era seguidor da escola estóica e viveu parte de sua vida como escravo em Roma; ndt] que imaginou que as coisas tinham duas asas – uma leve e fácil, a outra rude e pesada; esta a dor, aquela a alegria. Ele, seguramente, se enganou ao acreditar que, na medida em que as pegamos por uma ou outra das asas, elas nos podem trazer contentamento ou aborrecimento. Seu pensamento foi mais razoável ao dar dois braços à Vontade, um que torna pesado e desagradável tudo o que ele toca, e outro que a tudo torna leve e agradável; este é o Arquiteto de nossa felicidade, aquele é o operário de nossa miséria. E alguém também imaginou, sabiamente, que a Vontade traz uma chama em uma das mãos e um vaso cheio de água na outra. Com efeito, uma de suas mãos é defeituosa e infeliz e a outra, pelo contrário, é de tal forma feliz e bem composta que pode, sem se fazer mal algum, pegar as coisas mais rudes e desagradáveis justamente pelo lado em que nos machucam ou nos queimam. Ela pode tirar prazer de tudo o que causa dor. Ele converterá em bem para nós tudo o que ele toca, por uma propriedade mais maravilhosa e infalível ainda do que a desse famoso Rei dos Lídios [trata-se do rei Midas, citado expressamente no texto original latino: “Maior haec gratia, quam Midae, cuius digiti fodinae erant auri; cuius palma, India, aut Arabia aliqua”; ndt] que produzia ouro apenas tocando com as mãos, que eram como outras mãos da Índia e uma nova da Arábia [confira nota anterior para compreensão desse trecho, cuja tradução parece obscura; ndt]. Por esta feliz mão, a Vontade muda em ouro tudo o que lhe agrada. Ela faz uma coisa infinitamente mais nobre e preciosa, uma coisa que vale mais que todo o ouro do mundo e que nem mesmo ele nos poderia adquirir. Ela faz nosso soberano bem, ela é, verdadeiramente, para nós, as Índias e a Arábia [diz o texto latino: “Non minus manualis est laetitia, manum habet voluntas convertendi omnia, si non in aurum, in id, quod auro non emitur. Ipsa est sibi felix Arabia, ipsa India, ipsa aurisodina, & vena locupletis pacis, non indigae rebus laetitiae”; ndt].

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 60-62.

Segundo prelúdio - Capítulo VII

CAPÍTULO VII
Experimentamos sempre como a alegria que as coisas nos prometem é falsa e enganadora e como somos infelizes de tirar proveito delas. Todo dano que nos chega não é suficiente para nos desiludir, toda a nossa experiência se torna inútil por causa de nossa fraqueza. Não acho que isso seja estranho: que tenhamos medo do mar depois do primeiro perigo por que nele passamos; porque, se ele é tempestuoso uma vez, não é estranho que esperemos que, da outra, ele seja tranquilo; mas, para não mentir em nada, eu não me admiraria suficientemente, tendo visto tão frequentemente a nossa alegria acabar nas tempestades que a Fortuna suscita, de ver que não temos medo algum, que não perdemos a confiança nela [na Fortuna], que nos asseguramos em suas promessas, e nela embarcamos de novo tão logo ela se acalma e a vemos como que recolocada na bonança. Nós nos lisonjeamos com este pensamento: que sua cólera se apagou, que só queria nos colocar à prova, que sua verdadeira intenção não era nos fazer mal, mas apenas nos fazer medo. Será que devemos nos surpreender com o fato de que ela, depois de ter corrido o mundo inteiro, com a mesma rapidez que a chama corre pelas florestas e que o vento do Sul corre sobre as águas, para dizer com o Poeta [não sabemos de que poeta se trata e, no original latino, não aparece a referência nem ao poeta nem à citação utilizada na tradução por Louys Videl; ndt], repousa por um momento, a fim de retomar o fôlego e, então, se recolocar em sua corrida? Saibamos que se, alguma vez, ela para, ela repousa, é muito mais por cansaço que por um desígnio seu de nos deixar repousar. Alguém [no texto original, Nieremberg se refere a um certo sírio: “dixit probe syrus”; ndt] disse, com muita razão, que acusamos Netuno sem razão, após um segundo naufrágio. É melhor dizer que aquele que chora uma segunda desgraça acusa a Fortuna injustamente, que ele merece o que ele chora, e que apenas ele é culpável por aquilo de que se lamenta. Um mercador da Sicília que encheu seu barco de figos, tendo sido obrigado pela tempestade de lançá-los ao mar, e vendo do barco que o mar se tornou tranquilo outra vez após isso, disse: vejo bem o que aconteceu: quereis os meus figos; sua chacota foi agradável, mas sua conduta foi adequada, pois ele não quis trazer os figos de volta para o barco, ele se guardou de exigir piedade de quem não tem nenhuma. Se fôssemos sábios, troçaríamos e desejaríamos também que a fortuna troçasse de nós, culparíamos apenas a nós mesmos dos males que nos chegam, visto que eles só procedem de nós mesmos e que nós somos unicamente sua causa. Quem pedisse um fruto a um Olmo não seria muito ridículo? Não é possível ser liberal com aquilo de que se tem necessidade. Quem nada tem nada pode dar. Se a felicidade não vem das coisas que estão fora de nós, é uma extrema loucura a esperar delas. Elas são impotentes, não saberiam beneficiar ou nutrir; se elas só sabem fazer a última, isso quer dizer que elas são suficientemente a outra [frase obscura, que precisa ser comparada com o original latino que diz – a partir da comparação com o olmo até o final do capítulo: “Qui fructus, & remedium famis quaereret ab ulmo, non istam, sed se accuset. Nemo prodiget, quod mendicat. Nemo potest dare, quod non habet. Debet petere ab habente. Si non habent res gaudium, stultum est, illas flagitre importuno voto. Non itaque reae nostri angoris sunt, quas absque iure criminamur. Ipsae innocentes a damnis nos vexantibus: ipsae illiberales bonorum, quibus perfruimur. Non valent benefacere, nec sciunt noscere: satis licet in hoc beneficae praeterea ineptae, nisi nostra; erudiat, opemque ferat voluntas, nosve prodat. Nec gratiam merentur, nec bilem. Nihil dare possunt, quod sibi cor non praecipiat”; ndt]. Não podemos receber bem algum delas se nossa vontade não as ajudar; nem mal algum se ela não nos trair: certamente, não há nada do que se louvar ou se lamentar. Elas não merecem nem cólera nem reconhecimento; elas não nos poderiam dar nada que não venha absolutamente de nós mesmos.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 58-60.

Segundo prelúdio - Capítulo VI

CAPÍTULO VI
Não há lugar mais apropriado para guardar e conservar este tesouro. Sem dúvida, só mesmo dentro do nosso coração haveria um espaço tão precioso. E, no entanto, todo mundo a procura como se fosse algo perdido. Reviramos céu e terra, atormentamo-nos, matamo-nos para encontrá-la. O que poderia ser capaz de reparar nossa perda? Não seria muito mais perigoso arruinar o próprio espírito do que o corpo? Enquanto trabalhamos para estabelecer nossa alegria, nós nos destruímos. Enquanto estamos em busca da felicidade, perdemos o que deve possui-la. Não acontece que procuremos algo que temos nas mãos e achar que perdemos algo que está cuidadosamente guardado? Nós temos uma aflição enorme por encontrá-la, e não saberíamos ter uma aflição mais desagradável e inútil. Nosso trabalho e nossa dor crescem tanto mais, quanto mais buscamos aquilo que não podemos perder jamais; quanto mais buscamos a felicidade onde ela não está, e onde é impossível encontrá-la – fora de nós –, tanto mais a perdemos dentro de nós. Nossa esperança é duvidosa e nossa aflição é certa. [...] Fazemos a alegria morrer em nosso coração, dissipamos este tesouro com nossas próprias mãos e, depois, vamos procurá-lo em outras plagas. Podemos guardar em nós a felicidade; sem dúvida, está em nosso poder conservar esta Divindade doméstica. Cada um é o autor e o Pai de sua alegria. Nós a temos em nós sem nenhuma dificuldade, e a procuramos em outros lugares com inquietudes e desgosto.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 56-58.

Segundo prelúdio - Capítulo V

CAPÍTULO V
Qual é, portanto, nossa cegueira quando nos insistimos em cuidar das coisas que são estéreis e infrutíferas? Qual é a nossa loucura quando as abraçamos com tanta paixão e nos ligamos a elas como a trepadeira se agarra ao rochedo; visto que não seríamos capazes de nos manter ligados a elas por muito tempo e nem com tanto firmeza como a trepadeira sobre o rochedo? A trepadeira se conserva por si mesma, se mantém verde pelo seu próprio humor [trata-se aqui não da ideia de humor que temos hoje. Na medicina da alma – de fundamentação hipocrático-galênica – os humores eram os fluídos que controlavam os temperamentos dos seres animados; ndt]. Porém, a raiz de nossa alegria se seca muito rapidamente, porque não queremos alimentá-la a partir de nós mesmos, mas gostamos que ela receba seu alimento de fora de nós, que ela tire seu alimento de uma pedra, ou de algo que não poderia dar nada a ela. Ignoramos ainda que as coisas que estão fora de nós não produzem nenhum contentamento e que a tristeza também não vem delas? Assim como os terrenos ruins só dão origem às ervas daninhas e aos espinhos, será que ainda ignoramos que apenas a vontade é a mãe da alegria e que é ela que faz nascer a alegria, por assim dizer? As coisas podem, verdadeiramente, ajudar de alguma maneira no nascimento da alegria, elas podem servir a isso, mas elas não são capazes de dá-la à luz. É o nosso coração que produz nossa alegria. Por que abusamos de nós mesmos, fugindo dos sofrimentos e da pobreza – que são, para nós, asilo e muralha contra os assaltos da Fortuna e nos lembram, constantemente, de sua inconstância e sua fúria? Por que nós nos enganamos com o desejo das riquezas e das volúpias, imaginando que elas devem nos tornar felizes – visto que esse desejo nos suscita uma tristeza dupla, a de ter desejos ridículos e de tê-los inutilmente? Aprendamos que a riqueza e a pobreza não têm caráter certo pelo qual as podemos conhecer e distinguir uma da outra. Sem dúvida, elas são iguais; e onde há igualdade não há superioridade, não há eleição. A alegria será encontrada mais certamente numa cabana onde a pobreza resida que num Palácio onde reine a opulência e o luxo. Não é por acaso que as coisas nos agradem ou nos causem mal estar. Relembremo-nos sempre de que a alegria e a tristeza são estranhas a estes lugares, que elas não têm ali nem sua morada nem seu país, por assim dizer. Para nos fazer uma verdadeira imagem, representemos os errantes e vagabundos, que não têm nem caminho nem abrigo certos, que viajam por capricho e apenas para ver o país, mais do que com um objetivo formado de fazer uma viagem. Saibamos, com isso, que eles habitam muito mais o lar do pobre que o do rico, nas choupanas que nos grandes pavilhões, sob uma palhoça que sob lambris dourados. Eles ficam onde a noite os segura. No dia seguinte, eles retomam o caminho e continuam sua rota incerta. Não há nada a que a alegria se ligue particularmente, não há nenhuma amarra capaz de pará-la, apenas o nosso coração, ele sozinho, é capaz de retê-la e colocá-la entre correntes. Não há também lugar de onde possamos banir a tristeza, não há lugar tão bem fechado em que ela não possa entrar, ela tem a liberdade de entrar em qualquer lugar, ela não pode ser expulsa por Guardas de Palácios de Reis, nem por seus oficiais, de seu gabinete; não há nenhuma proscrição para ela. Que extravagância ir, com propósito deliberado, buscar a alegria onde estamos seguros de que só encontraremos a tristeza, onde não sabemos qual das duas encontraremos primeiro? O que diríamos daquele que fosse comprar pão num açougue, e carne numa padaria? É se desagradar da mesma forma que procurar alegria nas coisas. A alegria não está nelas, se a Vontade não as faz serem encontradas. Poderá haver maior loucura que correr mar e terra para procurar aquilo que temos dentro de nós? Fazemos esta loucura quando buscamos a alegria fora de nós, quando procuramos algo que está em nossas mãos. Esperamos de outro o que podemos nos dar a nós mesmos. Por que, portanto, iremos buscá-la por tantos caminhos e com tantos cuidados? Ela está ligada à nossa pessoa, não às coisas, e é nisso que consiste a excelência de nossa felicidade. Quando elas todas acabarem, nossa alegria não acabará; ela se encontrará inteira e sã após as ruínas mesmas do mundo. Ela só pode acabar quando acabarmos nós também, pois nós a carregamos dentro do nosso coração.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 53-56.

Segundo prelúdio - Capítulo IV

CAPÍTULO IV
De onde procede esta diferença? Que maravilha que dois efeitos tão diferentes, tão pouco compatíveis, a alegria e a tristeza, venham de uma mesma causa! Que dois riachos de uma qualidade tão contrária, corram com uma mesma força! Que o que queimava, agora gele, que de um mesmo canal saiam o gelo e o fogo? Considerando assim as coisas, se poderá dizer que elas são da natureza daquele famoso Rochedo que lançava chamas e vertia água, que se tornou, ao mesmo tempo, fonte e fornalha. Sem dúvida, esta diversidade não vem delas, que são incapazes de mudança e que permanecem sempre no mesmo estado. É preciso, portanto, que esta diferença proceda dos movimentos da Vontade. Ela não deve vir de outro lugar. É nela que está a verdadeira sede da alegria e da tristeza. É a vontade sozinha que lhes dá o ser, pelo privilégio e pelo direito de sua inteira e plena liberdade. Com a mesma razão que se pode dizer que elas são produzidas pelas coisas que dependem das leis de sua natureza, da mesma forma que um escravo depende de seu mestre, elas não poderiam mudar de condição, nem aparecer com um outro rosto senão o que têm – seus rostos são sempre os mesmos e o são igualmente para todos. Somente a Vontade é franca e livre. Só pertence a ela se pronunciar sobre a natureza das coisas. Ela as determina como mais lhe agrada; ela faz a elas o que bem lhe parece. Assim, não é delas que vem nada desta diferença, mas tão somente da Vontade, que vai para onde quer e não conhece nada que a limite ou que a constranja. Assim, as coisas só têm as qualidades que recebem dela; está absolutamente em seu poder torná-las boas ou más, fazer com que elas nos agradem ou nos choquem. Alguém disse [não sabemos de quem se trata; ndt], certa vez, acerca do fogo que ele tempera as carnes. Pode-se também dizer o mesmo da Vontade: que ela prepara e tempera as coisas; que ela é bastante capaz de lhes mudar a própria natureza; que, por ela, a doçura mesma pode se tornar amarga e a amargura se tornar doce. Em uma palavra: que é puramente ela quem faz delas o que são; que dependem soberanamente dela; e que só têm o caráter e o preço que a estima dela lhes dá.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 52-53.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Segundo prelúdio - Capítulo III

CAPÍTULO III
Além do mais, esta diversidade de sentimento pelas coisas não foi menor naqueles que, por cima das luzes da razão, foram esclarecidos pelas luzes da Fé. Quem terá tido maior paixão pela Vida do que a generosa Virgem Apolônia [virgem e mártir da Alexandria, considerada a padroeira dos dentistas; ndt] teve pela morte? A quem ela desejava, buscava sempre impacientemente; para quem ela corria com um amoroso e divino ardor; que ela previu e admirou muito mais do que ela mesma era admirada. As Riquezas não saberiam oferecer tão pura e perfeita alegria como aquela que Serapião Sindonita [monge egípcio que viveu no século IV, que possuía apenas um manto (síndone) como guarda-roupa, mereceu também o título de “O impassível”, por causa de seu total controle sobre si mesmo e seu desapego por todas as coisas, até da própria liberdade, visto que se vendeu como escravo a uma família de comediantes, com o único fim de instrui-la na fé cristã; ndt] recebeu da sua pobreza. Ele não tinha do que viver e nem mesmo do que cobrir a nudez de seu corpo. Para ter menos ainda, e não ter nem mesmo em seu poder a sua pessoa, ele se vendeu e não crendo que nada pudesse, daí em diante, estar à sua legítima disposição, ele deu o dinheiro de sua venda, e quis ser possuído gratuitamente; e, por causa desta restituição, ele se vendeu ainda uma vez. As mais eminentes dignidades não trazem nenhuma glória comparável àquela que Santo Aleixo [santo da tradição cristã, muito conhecido pela Igreja Ortodoxa; ndt] tirava do opróbrio: ele não creu que fosse suficiente ser desprezado geralmente por cada um se não fosse desprezado em particular por aqueles que tinham mais obrigação de honrá-lo. Que poderíamos dizer das Volúpias se não o que a experiência nos ensina todos os dias? Que o desgosto nos vem delas antes mesmo que tenhamos saboreado a metade de seu gosto. Que não respondendo à opinião que temos de sua doçura e sua duração, e encontrando-se sempre menor do que nossas esperanças, elas nos deixam muito mais confusos do que contentes. Ninguém as buscou com tanta paixão, ninguém soube ser tão ávido por elas como São Lourenço [mártir do século III, que foi queimado vivo; ndt] foi pelos tormentos. Vendo que seu corpo só estava cozido pela metade, para nos servir de seus próprios termos, ele pediu a seus carrascos que o virassem do outro lado e que o deixassem mais tempo sobre o fogo; ele quis terminar de se assar, a fim de encontrar um martírio tanto mais doce e saboroso quanto mais longa a dor o temperasse, por assim dizer. O grande servidor de Deus, Eman [não encontramos referência acerca deste personagem; descobrimos, porém, a referência a um certo Santo Eman que, inclusive, dá nome a uma cidade francesa (Saint-Éman), no entanto não há dados sobre a história do personagem que dá nome à cidade; ndt], não foi menos faminto deste tipo de carnes; ele bebia água salgada para reprimir o ardor de sua ambição; ele queria apagar sua sede com aquilo que a acende. Ele pensava que a simples abstinência não teria gosto algum se ele não colocasse sal nela; e por uma delicadeza de sua austeridade, ele quis misturar sal abundantemente na água, a fim de aumentar seu prazer por sua aflição. Encontrando as mais encantadoras delícias de seus mais rigorosos sofrimentos, ele praticava todos os dias novos [sofrimentos], ele os buscava, ele estudava curiosamente as diversas maneiras [de causá-lo a si], a fim de se excitar bastante o apetite por eles; parecido com os delicados e gulosos, que despertam seu apetite com novas invenções de guisados e de molhos. Conrado [conhecido como São Conrado de Placência, morreu em 1351, depois de ter ingressado na Ordem Terceira de São Francisco; assediado por sua santidade, passou o resto de sua vida numa gruta; ndt], passando também para além, e estendendo para mais além os rigores de sua austeridade, esperava, ordinariamente, que as carnes estivessem estragadas para comê-las; como ele não poderia tomar refeição sozinho e sem companhia, ele só comia aquilo que os vermes pudessem comer com ele.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 49-51.

Segundo prelúdio - Capítulo II

CAPÍTULO II
Assim, portanto, se é necessário que as estimemos, se quisermos examiná-las e reunir num mesmo conjunto suas diferentes ordens, nós nos descobriremos, mais cedo ou mais tarde, enganados. Quem acreditaria falhar, eu vos pergunto, e não dar a cada uma o seu posto e o caráter que lhe é peculiar? Visto que ele enumera as que são agradáveis e que nos trazem alegria, vida, riquezas, honras, volúpias. Visto que ele chama de odiosas aquelas cujo simples pensar nos causa aflição, morte, pobreza, infâmia e dor. Encontraremos, porém, erro nesta nossa conta, será mesmo necessário que reconheçamos que ela não é justa; seremos constrangidos a consertar o erro que cometemos. Viram-se muitas pessoas que não somente amaram a morte e a consideraram como sua felicidade; mas viu-se também a quem a vida foi odiosa, mesmo até o ponto de lhes ser insuportável, e de lhes dar uma extrema impaciência dela se livrar. A posse das riquezas tornou a muitos tristes e desgraçados. Elas trouxeram dor para muitos, inquietude e cuidados a todos. A pobreza, pelo contrário, foi não apenas agradável a outros; mas também foi querida: eles a abraçaram com alegria e a procuraram com ardor. Sabe-se que eles fugiram das honras e dos lugares onde elas se encontram, da mesma forma com que fugimos dos ares infectos e contagiosos. E sabemos que se quis mesmo rir deles, desde o momento em que foram vistos desprovidos de sua dignidade, a quem as feridas não causaram nenhuma tristeza e que mesmo zombaram de sua infâmia. Alguns eram melancólicos em meio a delícias, outros se lançaram nas aflições e nos tormentos. Poder-se-ia, depois disso, não ter uma inteira persuasão desta verdade, de que a alegria e a dor não procedem em nada das coisas que estão fora de nós? E de que, falando bem a verdade, se elas permanecem sempre as mesmas ainda que os eventos sejam diversos, se elas não mudam em nada a sua natureza ainda que mudemos de paixão, é preciso para justificar bem isso que o que nos alegra ou nos aflige certamente tem seu assento no coração e que é em vão se esforçar por procurar a causa em outro lugar? Se as coisas que estão fora de nós produzissem a alegria e a tristeza, sem dúvida elas a produziriam necessariamente e em todo tempo. E, dessa maneira, uma mesma coisa nos deixaria incessantemente felizes ou tristes. Não é a morte sempre dura e inexorável? Por acaso, ela é desprovida do louvor a que pretende na igualdade que tem por todos e que permite a derradeira consolação àqueles que se empenharam contra a desigualdade da Fortuna? Como é que, sendo temida por todos, foi desprezada por Sócrates e ridicularizada por Terâmenes [político ateniense, que viveu no século IV a.C.; foi um dos principais idealizadores do golpe de Estado que instaurou o governo dos Trinta Tiranos; foi morto, após se opor aos excessos do tirano Crítias; ndt]. Como, com esta abordagem terrível, com este rosto assustador com o qual ela assusta os homens, ela não fez medo a Cânio [bispo e mártir do século III; ndt]? O mesmo Cânio que, para além de sua constância e de seu terrível temor em recebê-la, considerando-a com curiosidade como algo que ele nunca acreditou merecer lançar os olhos e pensar a respeito, parecia, por este mesmo cuidado, lhe honrar, lhe infundir dignidade; e de vil e desprezível que ele a considerasse a tornar estimável e preciosa. As Riquezas eram sem graças e sem charmes quando Cúrio [trata-se do mesmo Mânio Cúrio Dentato, sobre o qual se fez já referência; ndt] as recusou? Pareceriam elas tão ruins a Crato [Crates de Tebas (c. 365 a.C. - c. 285 a.C.), filósofo também da Escola Cínica e mestre de Zenão de Cítio e discípulo de Diógenes de Sínope, sacrificou toda a sua fortuna em nome dos princípios de sua escola de pensamento; ndt] que ele devesse temê-las? Terá ele crido que elas valessem tão pouco quando as jogou no mar, a fim de trocar sua perda pessoal pela perda daquilo que excita as maiores tempestades na vida dos homens, que ele abandonou ao naufrágio? Não era a Pobreza tão feia e tão assustadora, quando Antístenes [filósofo grego, nascido em c 445 a.C.; foi pupilo de Sócrates e advogou em causa da vida ascética, vivida de acordo com as virtudes; é considerado o fundador da Filosofia Cínica; faleceu em c 345 a.C.; ndt] a abraçou? Estariam as dignidades sem seu brilho, quando Fabrício [sobre quem nada encontramos; ndt] se desculpou delas? E a ignomínia teria mudado de rosto, revestindo maquilagens e ornamentos, para causar amor a Aristídes [estadista e estrategista ateniense, nascido em c.535 a.C., morreu, apesar de sua grande influência na cidade de Atenas, em extrema pobreza, em c.468 a.C.; ndt]? As Volúpias foram de mal gosto, quando foram rejeitadas por Diógenes [conhecido como Diógenes, o Cínico (c.404 a.C. – c.323 a.C.), foi um filósofo da Grécia antiga, discípulo de Antístenes; ndt]? E a dor terá perdido seu azedume e sua amargura, para ser considerada doce por Anaxárco [Anaxárco de Abdera (c.380 a.C. – c.325 a.C.) foi um filósofo grego, cuja inimizade com Nicocreon de Salamina, um tirano do Chipre, o levou a um fim trágico, submetido a uma tortura cruel. Conta a tradição popular que, certa vez, durante um banquete, foi indagado por Alexandre, se estava gostando da festa. Ele respondeu, voltado-se para Nicocreon: “Tudo, ó grande rei, está magnífico; somente falta uma coisa, a de que a cabeça de um sátrapa seja servida sobre a mesa”. O tirano nunca o esqueceu e, quando depois da morte do rei, o filósofo teve de aportar, contra sua vontade, no Chipre, tendo sido reconhecido, foi preso e, diante de sua placidez e comentários irônicos, Nicocreon mandou que lhe cortassem a língua. Colocado em um almofariz, foi impiedosamente pilado até a morte. Apesar deste massacre, manteve-se imperturbável durante todo o suplício, como se estivesse seguindo tudo aquilo que pregava em sua filosofia; ndt]? Certamente a morte é sempre e em todos os lugares a mesma, ela não mudou em nada sua condição para estes homens, nem mesmo para Sócrates ou para Décio [trata-se do imperador romano Caio Méssio Quinto Trajano Décio que, no ano 251 d.C., foi morto pelas mãos dos bárbaros; ndt]; ela não admite nenhuma diversidade em si, mas somente na maneira como é recebida, e assim como ela, as Riquezas, a Pobreza, as Honras, as Volúpias, a Dor e a Infâmia.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 46-49.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Segundo prelúdio - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO PRIMEIRO
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SEGUNDO PRELÚDIO
QUE as coisas que estão fora de nós não nos tornam em nada felizes e não produzem nenhuma alegria

CAPÍTULO PRIMEIRO
Está, portanto, claro que o meio de nos tornarmos felizes está inteiramente em nosso poder, não há dúvidas de que somos os próprios artesãos de nossa alegria e de que a composição de nossa felicidade depende absolutamente de nós. Mas, antes de começarmos este trabalho, antes de trabalharmos em uma obra tão necessária e tão preciosa, é importante aprender onde se encontra a matéria: se, segundo nossos princípios, ela se encontra em nós ou fora de nós. Se ela reside em nosso coração, podemos esperar um feliz sucesso de nosso desígnio, podemos pretender que nossos cuidados não serão inúteis. Mas, se ela vem de longe, e se é um produto de coisas que estão fora de nós, nos será tão difícil estabelecê-la que não poderíamos ignorar que elas não são de nossa jurisdição e que não somos sequer capazes de regrar seus acontecimentos. Sem dúvida, não temos o poder sobre a Fortuna que temos sobre nós: não a governamos em nada e não somos em nada mestres de seus caprichos. Ela tem o espírito menos constante ainda e menos quieto do que o cérebro de Zoroastro [profeta persa, nascido no século VII a.C., também conhecido como Zaratustra; ndt]. Ela [a Fortuna] tem um cérebro, assim como ele, num movimento perpétuo, e alguém poderia encontrar aqui um motivo para se divertir, ao saber que o que nele era uma marca de saber, nela é um sinal de insanidade. A Natureza não está de tal forma dentro de nós que, com ela, façamos uma mesma coisa. E tudo o que podemos nisso é sofrer o império e as irregularidades da primeira; sofrer as leis e ceder às necessidades da outra. Se a felicidade consistisse nas coisas que estão fora de nós, se ela procedesse, de fato, delas, poderíamos ter melhor meio para obtê-la do que nos ligar àquelas que são as mais férteis em prazer, e do que nos afastar e nos defender de tudo aquilo que causa dor? Mas qual a segurança, eu vos pergunto, nós poderíamos ter nisso? Como poderíamos saber, com tanta certeza, qual a diferença? Como colocar de um lado as agradáveis e de outro as importunas, as dividir em duas ordens separadas e distintas? Somos, todos os dias, agitados por paixões contrárias que não nos dão nenhum descanso, e é isso o que faz a nossa tristeza. Quase não somos sempre os mesmos: o que nos chocava mais cedo, agora nos agrada; o que condenávamos ontem, aprovamos hoje; e a experiência comum torna supérfluo o cuidado que poderíamos ter de justificar que, o que é matéria de alegria para um, é motivo de tristeza para outro. Os sentimentos do espírito são infinitamente mais diversos do que os do órgão que serve ao paladar: é preciso que as carnes pareçam bastante mais diferentes a este do que as coisas se mostram àquele. Não há razão mais poderosa, discernimento mais claro, experiência mais segura que possa estabelecer os fundamentos disso, que seja capaz de separar as boas das más. Elas estão todas misturadas e numa grande confusão: não há nada de mais incerto do que a certeza daquelas nas quais consiste a felicidade. Elas têm todas um rosto duplicado, elas brincam com a gente com duas mãos, elas nos sacodem, por assim dizer: na medida em que elas nos recebem com uma das mãos, elas nos lançam fora com a outra.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 44-46.

Primeiro prelúdio - Capítulo XVI

CAPÍTULO XVI
Todavia, pervertemos o uso de um tão nobre e raro instrumento. Por um estranho e cruel abuso, nos servimos dele contra nós mesmos, ao invés de nos servirmos dele contra a má sorte. Fazemos daquilo que deveria ser a nossa salvação a causa da nossa ruína. É por isso que o Poeta Menandro [que viveu na Grécia entre c.342 a.C. e c.291 a.C.; ndt] assumiu como tema principal a deploração de nossa condição, estimando-a mais infeliz que a dos animais. Ele teve piedade do homem, quando se deu conta dos cuidados com os quais o homem trabalha para construir sua própria aflição, tornando-se assim o operário do próprio mal. Porém, ele não foi tão injurioso contra a Natureza, acreditando-a culpável: ele não chegou nem mesmo a pensar que a nossa miséria fosse um efeito de seu [da Natureza] ódio. E quando ela não quis que participássemos de seus favores, sendo mesmo seu desígnio nos excluir inteiramente deles, qual a necessidade que podemos ter, se somos ricos por nós mesmos e não pelas vantagens que vêm dela? E se, pelo benefício do espírito, temos mais bens do que ela nos poderia dar, e que ela nem sequer quis nos dar, visto que ela ama nosso repouso, e teme nos dar matéria para problemas e inquietudes, teme nos fazer uma liberalidade ruinosa. Além do mais, como um alaúde bem afinado, tocado por uma boa mão, oferece um maravilhoso prazer e alegra os que o escutam; e como um alaúde desafinado, entre as mãos de um ignorante, é extremamente importuno, que causa sofrimento; assim também o instrumento do qual queremos aprender o uso e que tem a felicidade como objetivo e como termo de sua operação – nossa vontade bem composta e bem ajustada a si mesma – nos oferece uma singular alegria; enquanto que, estando desordenada e não tendo nem regras nem justeza, ela nos causa uma grande aflição, elas nos dá um extremo aborrecimento. Todos os Operários buscam, curiosamente, os melhores instrumentos para sua arte, eles estudam para se valer adequadamente desses mesmos instrumentos, eles sentem prazer nisso e se glorificam disso. Por que não teríamos nós o mesmo cuidado na mais necessária de todas as artes? Não há nada de mais natural e de mais ordinário ao homem do que o uso de sua vontade, mas não há nada que ele entenda e faça menos do que usá-la. É por isso que ele tem hábito sem nunca ter ciência. Deve-se a que infelicidade que ele faça tão mal uso de uma coisa da qual ele se serve a todo momento? Deve-se a que infelicidade que ele tenha tão pouca atenção a um instrumento que ele sempre tem nas mãos? Mostramos até aqui a utilidade singular e rara que recebemos do uso da vontade. Em seguida, veremos a certeza; justificaremos também que ela não é menos infalível que maravilhosa, e porque não é uma Obra da Vontade apenas, e que ela não a produz sem ser poderosamente ajudada nisso pelo entendimento, nós nos reservaremos a assinalar em seu lugar os notáveis ofícios que ela recebe dele.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 41-43.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Primeiro prelúdio - Capítulo XV

CAPÍTULO XV
A mão é o instrumento dos instrumentos e o primeiro dos órgãos, segundo Aristóteles, porque sem ela todas as coisas das quais o homem faz uso seriam absolutamente inúteis, já que seriam como que desprovidas daquilo que, para as coisas todas, cumpre o papel da Alma, dando-lhes vida e movimento. Galeno transfere este elogio para o espírito, estimando que ele é mais próprio do homem, porque foi ele que inventou as Artes, porque ele governa, ele guia a mão e ele é incomparavelmente mais nobre que tudo o que recebemos da Natureza. Mas, para falar bem a verdade, esses Filósofos dão a uma e a outro a glória que furtam à Vontade. É ela que deve ser chamada o instrumento dos instrumentos e ainda mais justamente, sem dúvida, visto que ela nos dá aquilo que a Natureza nos daria, quer dizer, aquilo que se pode pretender das ternuras de uma boa mãe, mas que ela [a Vontade] ajunta novos bens àqueles que nos vêm dela [da Natureza], e que ela aumenta infinitamente sobre as mais notáveis vantagens que deles possamos tirar. E para não mentir em nada, devemos muito mais à sua moderação [da Vontade] e, por assim dizer, à sua economia do que à liberalidade da Natureza, do que à prodigalidade da Fortuna, do que a todas as invenções e toda a indústria de nosso espírito. Ela encontrou o meio de nos dar todas as coisas, dando-nos um privilégio tão raro que é aquele de não ter necessidade de nada. Ela nos é liberal para além de tudo o que as outras poderiam ser. O que mais poderíamos dizer de todas as riquezas da Natureza? A Vontade é magnífica sem estrondo e sem pompa; ela nos fez adquirir sem maiores cuidados e penas toda a indústria do espírito; sem nada nos dar, com efeito, ela nos enche, ela nos satisfaz com todas as futilidades da Fortuna; ela é, certamente, a justo título, o instrumento dos instrumentos, não porque ela tenha nos enchido de raras vantagens, mas por aquilo que, pela excelente prerrogativa de sua moderação, ela faz em nós que tem o efeito de, sem nada, sermos ricos, às vezes até mesmo, à opulência, porque ela faz com que não tenhamos necessidade de nada. Com isso temos, uma vez mais, a possibilidade de justificar a Natureza por ela ter sido liberal com os animais, pelas coisas que ela lhes ofereceu como próprias, a fim de compor sua felicidade - já que a felicidade dos animais deve ser exterior e submetida à discrição de outros -, por ela ter dado a força aos Leões, a velocidade aos Cervos, a fineza às Raposas, e consequentemente a todos os outros os diversos meios que têm para poderem se conservar e se defender. Mas, já que a felicidade do homem deve vir de dentro dele, e já que ela só depende dele mesmo, poderia, eu vos pergunto, ter ele razão em se queixar de que ela o tenha excluído desse tipo de bens exteriores? Visto que, sem ter tido parte com ela, ele tenha tudo o que lhe é necessário para ser perfeitamente feliz. Visto que ele tenha, não apenas como os animais, com o que se garantir dos perigos que o ameaçam, e de se garantir a partir de vias muito mais nobres e seguras do que a força, a velocidade ou a esperteza. Visto que, além do mais, ele tenha algo com o que afastar a apreensão que precede todos os perigos. Visto que, em uma palavra, podemos dizer que ela tenha muito mais do que a metade de si mesmo, já que a felicidade não depende em nada de seu corpo, e que ela reside inteiramente em sua vontade.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 39-41.

Primeiro prelúdio - Capítulo XIV

CAPÍTULO XIV
Nós o temos em nossas mãos, trazemos em nosso coração este excelente antídoto contra nossa miséria, mas nós o negligenciamos porque ele está em nosso poder, a comodidade de seu uso nos é causa de desprezo. Nós buscamos antídotos difíceis e distantes que não têm nenhuma virtude; e quando eles se mostrarem muito fracos para ultrapassar a violência de nossos males presentes, e muito limitados para igualar ao seu número, eles não poderão mais prevenir o que nos suscita nossa enfermidade. Consideremos, aqui, seriamente, nossa condição. Façamos uma revisão geral do estado de nossa vida: estamos sempre perdendo ou necessitando alguma coisa, não segundo a Natureza, mas segundo a nossa ambição. O temor dos perigos nos quais podemos, a qualquer momento, cair nos dá trabalho; as injúrias, os desprezos que recebemos nos afligem; os incômodos que invadem naturalmente o nosso corpo; tantos acidentes complicados, tantos desencontros; tudo isso nos faz pensar que não será possível encontrar remédios para tantos males. E quando nós os encontramos, o cuidado de colocá-los em prática será um novo mal para o qual, porém, não haverá remédio. Imaginemos, eu vos suplico, um homem feliz a tal ponto que não tenha jamais havido um igual – um homem que seja considerado como o perpétuo objeto dos favores da Fortuna, e que não tenha nem mesmo aspirações mais, visto que lhe parecerá que sua vida não será mais atravessada por nenhum problema, que todos os dias lhe serão sem nuvens e todas as rosas lhe serão sem espinhos: a um homem desses, ainda assim, lhe restaria o medo de que sua felicidade mudasse; ele seria como que atingido pela preocupação de uma secreta apreensão, a de que a Fortuna só o elevou tão alto para o lançar no precipício, para cumprir a infeliz tarefa de mostrar a ele todos os traços de sua cólera e o deplorável exemplo de sua inconstância. Reconheçamos, portanto, que há muito menos remédios que doenças, que nossa pena será extrema e, às vezes, até mesmo infinita, na medida em que nos dedicarmos a nos curar em partes. Reconheçamos que a melhor coisa a fazer é recorrer ao remédio universal que trazemos dentro de nós e que consiste na vontade bem ordenada. De outra forma, seremos como alguém que, saindo nu pelos campos, durante uma grande chuva, quisesse não se molhar e cresse poder evitar se molhar por sua própria força. As calamidades desta vida são tão abundantes que podemos mesmo dizer que elas chovem sobre nós. Seria uma extrema loucura pretender evitá-las todas. É preciso, para isso, procurar uma cobertura e se colocar sob uma poderosa proteção. O que diríamos nós do soldado que fosse nu a um assalto? E que, tão logo o ferro e o fogo começassem a cair de todos os lados, se cresse em segurança só porque não sofreu ainda o primeiro golpe? Para ser invulneráveis é preciso ter armas experimentadas. Nossa vida não é somente uma guerra, é um combate: se nós não nos fortalecermos com uma boa resolução, se nós nos portarmos indignamente, sem dúvida, os aborrecimentos nos sobrecarregarão, seja por sua grandeza seja por sua quantidade. Não há nenhuma outra defesa que nos possa garantir contra a má sorte. Isso cabe apenas à Virtude. Isso é próprio apenas da Vontade que sabe prevenir todas as coisas capazes de a desregularem.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 37-39

Primeiro prelúdio - Capítulo XIII

CAPÍTULO XIII
A Vontade bem regrada é a soberana causa de todos estes efeitos [refere-se aos efeitos elencados no final do capítulo XII; ndt]. Há grandes máquinas que são postas em movimento com um pequeno instrumento, e aquelas que venceram a força cedem muito facilmente à indústria. A Vontade é capaz também de elevar e de governar a massa inteira de nossa felicidade, de destruir a grandeza de nossa miséria e de fazer parar os movimentos inconstantes da Fortuna, o que não poderia ser possível sem um milagre. Para adquirir inteligência nas artes, é preciso atenção e estudo. Por que não trazer ao conhecimento o mais importante e o mais necessário de todos? Seríamos nós insensíveis à excelência do bem que ele produz? Não nos despertaria ele de nossa languidez e nossa preguiça? Certamente não recolheríamos uma vantagem menor do que conquistar uma inteira vitória sobre elas. Está aqui a ruína, e por assim dizer, a morte de nossa miséria. Não é verdade que inventaríamos qualquer coisa que aliviasse por algum tempo que fosse o rigor de nossos problemas, que enganasse um pouco a nossa tristeza, e que suspendesse em nós, de alguma maneira, o sentimento de sua amargura? Mas, para nos afastarmos totalmente disso basta-nos apenas a nossa vontade. Esperar dos divertimentos ordinários, que os homens buscam para se desfazer de seu mau humor e dissipar sua melancolia; esperar das conversações, dos jogos, dos espetáculos, da música, um efeito tão grande como esse; é falho, porque, sem dúvida, eles são muito fracos para isso. Eles até conseguem impedir um pouco algum tipo de violência do mal, mas eles não conseguem afastar o mal inteiro. Podemos mesmo dizer que essas coisas são muito mais obstáculos do que remédios contra os efeitos da miséria, eles não seriam capazes de resistir à impetuosidade de nossas paixões. E estes furiosos Tiranos que nasceram e cresceram conosco não se rendem a tão suaves artifícios, mas, pelo contrário, eles são capazes de torná-los inúteis e vãos. Nossa tristeza os ultrapassa; seu azedume muda e corrompe todas as doçuras com as quais nós os tentamos encantar. Se nos separamos por um momento que seja dele, e se ele nos dá um pouco de descanso, ele retorna depois com muito mais força sobre nós: uma pessoa com febre, seguramente, encontra algum alívio ao beber um pouco de água, mas ao invés de apagar o ardor que o queima, a água o reacende com mais força; é como lançar uma chama sobre uma brasa. Triunfar sobre a Fortuna não é uma glória que o entendimento deve se atribuir totalmente. A Vontade bem ordenada tem a melhor parte. Tudo o que buscamos fora disso, para opor à nossa miséria, é igualmente inútil. Temos dentro de nós o verdadeiro remédio, que é tão soberano que opera nossa inteira cura; este remédio é a saúde mesma.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 35-36

Primeiro prelúdio - Capítulo XII

CAPÍTULO XII
Eis as vantagens que nos vêm disso. Conhecemos sua utilidade, é-nos ainda necessário, daqui em diante, conhecer seu emprego. Após haver concebido a opinião de nossa felicidade, e nos termos feito a imagem de sua posse infalível e próxima, encontramo-nos, com admiração, diante do fato de que estamos ainda muito distantes de possui-la, e de que fazemos nós mesmos a nossa miséria na medida em que dedicamos muitos cuidados na busca por coisas supérfluas, ou pelo desgosto que temos pelas que nos são realmente necessárias, e pelo sofrimento moral com o qual suportamos nossa condição que, porém, não é insuportável. Após todas essas considerações e toda a nossa invenção, restam-nos ainda certos cuidados. Ainda que estejamos na abundância de todas as coisas, que tenhamos nossos contentamentos e comodidades, e que possamos dizer que nossa ambição esteja satisfeita, ela não está totalmente saciada. Por isso, não conseguiríamos ter repouso. Por isso, concebemos, sem parar, esperanças e desejos. E como só nos lembramos de imputar a causa de nossas dores à Natureza, ressentimo-nos de que ela seja culpável, e criamos novas inquietudes, porque, procurando outros bens que não os seus, apreendemos os inconvenientes que nos podem vir desses outros bens, ou sofremos impacientemente os sofrimentos nos quais já caímos. Porque, para bem dizer, o entendimento sozinho não conserta nossa miséria: todos os seus artifícios, todos os seus esforços não são capazes de nos livrar dos males que nos incomodam. O entendimento precisa, para isso, do socorro da Vontade: esta é a chave de leitura desta obra, seu maior empreendimento. Seguramente, nosso mal não é sem remédio; o que o entendimento não pode nos dar seremos capazes de obter da Vontade, desde que ela não esteja corrompida e misturada com as volúpias; mesmo que, nesse estado, ela produza a maior de todas as volúpias: uma volúpia purificada de toda ambição, que não é frágil nem decrépita como a do corpo, mas que é sólida e permanente; uma volúpia que a Filosofia não teve nenhum escrúpulo em honrar com o nome de Virtude, que opera a paz e a alegria do espírito, em meio às mais violentas dificuldades e os mais cruéis ultrajes que recebemos da Fortuna. Foi a propósito dela que um Poeta [não conseguimos localizar nada a respeito deste poeta; ndt] me parece ter dito razoavelmente que a paz é a completa e inteira obra da Virtude, o feliz fim dos trabalhos, o preço da guerra cumprida, a recompensa das penas e dos perigos; que, por ela, os Astros mesmos conservam seu posto e seu brilho; que ela é o firme vínculo que ajunta e mantém as coisas do mundo; que ela é o que Deus ama e aquilo que Lhe permite trazer o título que tem. Há um método que nos conduz, como que pela mão, à posse de um bem tão grande: implorando, antes de tudo, os favores do Céu, sem os quais todos os nossos trabalhos serão inúteis, e não saberíamos nunca manter o caminho da virtude. Com essa assistência do alto, nossa vontade pode, comodamente, ser instruída, porque a graça se acomoda a ela e não lhe tira sua liberdade. Há ainda uma excelente maneira de usar de nossa vontade para impedir que a Fortuna abuse do poder que nossa fraqueza lhe concede. E esta maneira tem preceitos que nos ensinam a moderação, o desejo ou a aversão que devemos ter por todas as coisas, a fim de podermos erguer um bastião contra as adversidades, uma tranquilidade nos problemas, uma alegria nas dores, e até mesmo uma felicidade na miséria.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 32-34.

Primeiro prelúdio - Capítulo XI

CAPÍTULO XI
Com isso, nós os temos duplamente: o divino Benfeitor no-los distribuiu com duas mãos. É assim que eu nomeio estas duas faculdades: o Entendimento e a Vontade. Certamente podemos, pela assistência de uma das duas, nos curar completamente de nossos males; podemos mesmo preveni-los e contorná-los; há vezes, inclusive, em que não nos é difícil converter, com sua ajuda, em felicidade nossa própria miséria, já que a felicidade é justamente o remédio da miséria – se é que podemos chamar de remédio o que, mais apropriadamente, deveria ser a saúde mesma. É-nos suficiente, portanto, para obter tudo aquilo de que precisamos, e eu diria ainda mais, que nos é suficiente para não termos necessidade de coisa alguma; ficando certos de que nisto consiste a verdadeira riqueza, e que ela é muito mais não ter necessidade alguma do que nos livrarmos das necessidades. O entendimento supre, através de sua arte, os defeitos dos bens que recebemos da Natureza; ele é abundante em invenções excelentes e raras que nos impedem de estimar os dons que ela deu aos animais e de querê-los para nós. Ele nos dá, sumamente, o suficiente para nos satisfazermos e não invejarmos a condição dos animais. Ele nos preserva do erro de acreditar que eles foram mais felizes do que nós. Mas, apesar de ele nos haver munido suficientemente de tudo o que nos é necessário, seu poder não se estende a nós de forma a podermos combater a inconstância e a malignidade da Fortuna. Ele supre, verdadeiramente, os defeitos da Natureza, mas ele só o faz em parte: ele não seria capaz de consertar esses defeitos. Por maior e mais comprovada que seja a virtude de um medicamento, ela não ultrapassa ou adoça a violência da doença, ela não produz sempre e em todo o tempo a cura inteira. Tudo o que esta arte pode nos ensinar – e é, sem dúvida, muito – é não cair num desejo tão baixo como aquele que o vulgo tem pela condição animal, e não cometer a injustiça de caluniar nossa mãe comum.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 31-32.

Primeiro prelúdio - Capítulo X

CAPÍTULO X
Ela formou o corpo para o espírito. Este maravilhoso Operário não poderia ser tão bem munido de um instrumento como o espírito, para poder responder à sua postura e atividade. Não poderia haver nada mais adequado para seguir à prontidão de seus movimentos e para servir à diversidade de suas operações. Pela indústria deste nobre artesão, o homem pode dizer que ele tem, sem muita dificuldade, o que lhe permite ter todos os bens. Ele pode se gloriar do fato de ser rico de uma única coisa que enriquece todas as outras. E do que mais ele deve cuidar – inclusive para a estrutura perfeita de seu corpo – se esta coisa não se preocupa muito com os favores e com as graças da Natureza – ou seja, se ele tem a vantagem do bom tamanho ou a boa aparência – mas se o homem tem a constituição de espírito sã e feliz? Será que o homem não sabe que esta coisa conserta a tristeza e os limites da outra? Será que não entende que ela apaga, ou pelo menos recobre, as imperfeições? E, para dizer bem a verdade, de que serve aos Centauros ter um corpo duplo se lhes falta luz e inteligência? E não teríamos razão em dizer que, com uma e outra [luz e inteligência], as Graças [refere-se à representação das Cárites da mitologia grega – Aglaia, Tália e Eufrosina, seguidoras de Vênus e dançarinas do Olimpo –, que são representadas por três mulheres nuas; ndt] não estão nuas ainda que estejam sem roupas? Recolhamos disso que o espírito vale infinitamente mais do que todas as vantagens que a liberalidade da Natureza tenha dado aos animais; e que, sem outra recomendação do que aquela que ele tira do espírito, ele é de um valor inestimável. E, com certeza, quem diz o espírito diz o que compreende e encerra em si todos os bens, como quem, falando do dinheiro, fala do que significa, em geral, todas as riquezas; fala, em uma só palavra, do valor das coisas juntas. E podemos mesmo dizer que aqueles que têm dinheiro em abundância, não tendo coisa alguma, possuem todas as coisas, já que, com o dinheiro, podem ter todas as coisas, e que a aquisição delas só depende de sua vontade. Há também, certamente, mais vantagem na posse do dinheiro do que na posse de todas as outras coisas; e vemos ainda mais valor em uma única moeda do que na quantidade de outra, de forma que a unidade prevalece sobre o número, porque a unidade contém o número, e o preço de cada uma está gravado em si. Nisso se justifica, sumamente, a excelência da pobreza, já que as riquezas se formam sobre o seu exemplo, e já que elas [as riquezas] são maiores quando consistem em poucas coisas – tanto isso é certo que a opulência afeta a simplicidade, porque ela aumenta o preço dessa última, e a pobreza é, então, a verdadeira imagem da riqueza. Assim, portanto, uma só coisa nos permite possuir todas as outras coisas: o espírito sozinho nos faz adquiri-las, nos dá todas as outras coisas, e para as ter todas, sem dúvida, nos é suficiente ter o espírito.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 29-30.

Primeiro prelúdio - Capítulo IX

CAPÍTULO IX
Alguém poderia ainda se persuadir de que ela nos obrigaria muito mais nos revestindo de pêlos, agulhas, escamas ou penas, como ela revestiu os animais, e nos dando armas e defesa como deu a eles, mais do que deixando-nos nus, sem defesa e sem cobertura? Que aqueles que têm este pensamento saibam que é sobretudo nisso que ficou evidente sua sabedoria e sua bondade. Ela fez aos homens o favor de permitir que o gosto do espírito fosse tão livre quanto o gosto do corpo; não foi sua intenção que o homem fosse mais constrangido em um que em outro. Ela previu que a maior parte deles não queria portar vestimentas; como, com efeito, a metade do mundo não porta; e previu também que o resto queria não apenas usar vestimentas, mas afetaria graça e ornamento no uso dessas vestimentas. Ela julgou muito bem que haveria homens que se agradariam de estar sempre armados, e outros que desejariam nunca estar; que haveria caprichos de uns em não terem nem defesa nem cobertura, e de outros haveria divertimento no buscá-las [a defesa e a cobertura] em cavernas e florestas. A fim de que nós pudéssemos nos formar como bem nos parecesse, e que pudéssemos escolher o partido que mais estimássemos, ela não assumiu nenhum direito sobre a liberdade de nossa condição; ela quis dar a cada um sua inclinação própria como guia e, como lei, quis dar sua própria fantasia. E, de fato, nos é necessária outra razão, além da experiência cotidiana, para justificar que todas as coisas não são agradáveis a todos; e que elas não satisfazem o tempo todo às mesmas pessoas? Imaginai que incômodo seria estar sempre vestidos e armados, não poder sair de casa, como as tartarugas e as ostras não saem das suas! Certamente, como durante uma guerra, seria necessário e bem adequado portar armas; mas seria inútil e ridículo carregá-las durante a paz. Os forros que o rigor do inverno nos obrigam a procurar com tanto cuidado, se tornam importunos tão logo a bela estação chega, e todo mundo, então, faz o possível para se aliviar desses forros. Como há um tempo para se vestir, há um para se colocar nu. É preciso ficar nu, pelo menos, para apreciar adequadamente a doçura do repouso ou tomar banho. Se consideramos seriamente com quanta prudência a Natureza se comportou conosco, e a razão que ela teve de nos deixar no estado em que nos encontramos, encontraremos razões para acreditar que ela satisfez perfeitamente a todos os nossos desejos, e para acreditar também que possuímos gratuitamente tudo o que nos custaria muito procurar. Nossas casas nos garantem contra as injúrias do ar: nós entramos nelas quando ele se complica e nos ameaça com uma tempestade; nós nos trancamos nelas, sem sermos seus prisioneiros; elas nos cobrem sem que as precisemos carregar; a comodidade que delas recebemos não tem nada importuno e servil. É-se também, algumas vezes, contente de estar no campo e se maravilhar na contemplação das diversas belezas da Natureza. Nesses momentos, parece-nos estar saboreando, por antecipação, a felicidade da outra vida, tendo, desde a terra mesma, como que a inteira posse do Céu. A Natureza nos tornou mestres de todos os bens, não nos dando nenhum daqueles que ela partilhou com os animais. Ela deixou seu emprego à Razão, e seu direito à nossa liberdade. Ela submeteu todas as coisas ao espírito, a fim de que, buscando-as todas, ele se cultive, ele se embeleze. Ela não quis dar um ponto final no homem, para que ele completasse, por sua própria vontade, o que pudesse faltar à sua perfeição, para que os defeitos que ela lhe tivesse destinado fossem consertados de forma mais vantajosa por ele mesmo.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 26-28.

Primeiro prelúdio - Capítulo VIII

CAPÍTULO VIII
Ela nos conserva a liberdade até mesmo nas coisas que dela recebemos, ainda que leves e de pouca importância – sinal, inclusive, de que ela preferiria perder uma parte de seu próprio direito sobre nós a nos arrancar esta liberdade, nos sujeitando a seu uso. Ela também submeteu inteiramente à nossa discrição os bens que dela recebemos, e ela não quis de forma alguma nos impor a necessidade. Mas, a fim de tornar perfeita a obrigação que nós lhe devemos por um tão excelente privilégio, ela não o concedeu apenas ao espírito, ela não o encerrou em um único lugar, mas ela o concedeu também à imitação do corpo. Assim, ela não reduziu o homem a ter apenas um mesmo gosto, como o resto dos animais, ter apenas um tipo de alimentação. Eles [os animais] não conhecem nada fora daquele tipo de alimento para o qual ela lhes ordenou; ela lhes restringiu, para isso, a um espaço muito pequeno de ação: os Leões e as Águias não saberiam se alimentar de outra coisa senão de carne; os bois e as ovelhas de ervas e raízes. Mas, ela não prescreveu nenhum limite para o homem. Ela lhe abriu uma grande e vasta carreira, no qual seu sentido se alegra pela liberdade de escolha do que mais tenta seu apetite, do que mais toca e lhe é agradável, sem ser constrangido a se determinar por uma coisa particular. Consideremos, eu vos peço, com que favor ela nos trata. Ela é cuidadosa e até mesmo ciumenta, e nos quer manter na nossa liberdade, e cuida muito bem, sem dúvida, de que nada a possa violar. Ela quer que nós nos constituamos da maneira que mais nos agrade, e quer também que nada nos impeça de contentar plenamente a nossa fantasia. Por esta razão, é possível dizer que ela apenas começou o homem, que ela apenas o esboçou com os traços mais simples, e que ela só lhe tenha dado a matéria. Isto é compreendido entre o vulgo como uma injúria; é, diz-se, uma evidente marca da pouca consideração que ela tem por nós. No entanto, é certo que isso é uma graça; e podemos recolher disso o quão altamente ela nos considera. Ela se comportou discretamente e com respeito quanto a nós. Ela não quis se meter em nossos negócios. Dir-se-á que parece suficiente ela não nos reconhecer como seus filhos; o contrário se justifica pelos devotamentos que ela testemunha por nós, e pela bondade que ela tem de não nos constranger a nada. Isto, sem dúvida, é suficiente para destruir esta calúnia; e quando formos forçados a confessar que não temos obrigação alguma com ela por causa de nossa liberdade, seríamos muito ingratos se não reconhecêssemos que ela nos dá abundantes meios de fazer uso dessa mesma liberdade. Certamente, se ela não nos foi liberal, não podemos, porém, negar que ela nos tenha sido cuidadosa.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 24-26.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Primeiro prelúdio - Capítulo VII

CAPÍTULO VII
Muito mais que a nudez, os animais reverenciam a pobreza, como sendo a mais natural e mais eminente característica da dignidade do homem; como o diadema e a púrpura fazem a Realeza. Não ouvimos ainda dizer que eles reconheçam voluntariamente algum desses que se vê seguidos de uma multidão insolente de guardas e de valetes, e que ofuscaram os olhos do povo pela magnificência de suas roupas, pela pompa e brilho de suas riquezas. E admiramos a obediência que tiveram, sem resistência e sem pena, a muitos daqueles que tinham por seguidor e por marca de grandeza apenas a pobreza. Visto que há um número infinito de provas a que poderíamos fazer menção aqui, e visto que são muito frequentes os exemplos [no original latino, Nieremberg descreve: “Vidimus multos sine decore, multos cum paupertate, exermes multos. Heleno, & Pachomio parvere crocodili; Beno etiam hippopotami; Antonio, & Machario onagri; Gerassimo, Sergio, Helladio, Ioanni, & Simeoni Prisco leones; Philippo, & Ammoni dracones; Alexandrino Machario hyaenae; Theophilo, Sergio, & Hygino columbae; Heliae, & Benedicto corvi; Nicephoro Petenensi ursi, & anates; Adamo Firmano lupi, & hirundines; Iosepho Anchetae, nostris seculis, quod non obstat admiraationi, tygrides; Paulo scorpiones, & cornutae aspides”, até chegar ao exemplo em que o tradutor se deteve; ndt], seria muito tedioso enumerá-las todas, por isso, ser-nos-á suficiente empregar apenas o exemplo daquele horrível Dragão da Dalmácia, que devorava rebanhos inteiros e fazia de um boi inteiro apenas um pedaço de carne, e que carregava o nome de Boa, e que obedecia a Hilário [trata-se de Santo Hilário (c.291-c.371), fundador da vida anacoreta na Palestina, seu biógrafo é São Jerônimo; não encontramos, porém, nenhuma relação de Santo Hilário com um dragão; sabe-se apenas que viveu na Dalmácia, em Epidauro, onde, por ocasião de um grande terremoto, em 366, prestou muitos serviços; ndt] até morrer no meio de um fogo. Não são as riquezas que dão este direito ao homem. E por mais que me digam que quem possui dinheiro em abundância tem mais meios de conseguir o serviço dos animais, é certo que só adquirimos esta vantagem por uma prerrogativa de nossa antiga autoridade, da qual nos resta ainda alguma marca. Nunca a revolta de um Reino é tão geral que absolutamente todo o povo se torne rebelde. A fidelidade que as pessoas perderam se conserva entre os domésticos do Príncipe; e sua afeição permanece inteira em meio à ruína de sua fortuna. A bem da verdade, não possuímos mais o título que nos fazia reinar soberanamente sobre os animais. Nós caímos do alto posto que nos havia dado os animais como escravos. É preciso aceitar, com vergonha, que eles não estão mais à vontade; e que, agora, só nos obedecem contra sua própria vontade e à força. Mas é preciso dizer também, a nosso favor, ou pelo menos para nossa consolação, que nem todos eles se afastaram de nós; alguns permaneceram conosco e mantêm a mesma reverência a que nós, antes, os submetemos, e não ousam, parece, recusar esta reverência ao nosso nascimento e à nossa morte, porque eles ainda veem nesses eventos a imagem de nossa antiga dominação, visto que em um e em outra os homens estão igualmente nus. É inútil opor a isto, por causa do incrível número de provas em contrário, os Leões de Berenice e de Hanno [não encontramos referência sobre as relações desses dois personagens e leões. Descobrimos que Hanno é nome de vários personagens cartagineses, entre os séculos III e V aC. Quanto a Berenice, descobrimos várias rainhas e personagens com este nome seja na Grécia que no Egito, porém, em nenhuma das histórias localizadas, se viu relação com leões; ndt]; e os Dragões de Toas [no original latino, a referência é mais completa: trata-se de “Thoae Achaici”, ou seja, o aqueu. Sabe-se que, na antiguidade, os gregos eram conhecidos como aqueus. Nesse caso, o autor faz referência, provavelmente, a Toas, filho de Andrémon, que foi rei dos etólios. Porém, mais uma vez, não encontramos referência a dragão; ndt] e de Heráclide [encontramos vários personagens com este nome, mas nenhum cuja história seja marcada por um dragão; ndt]. Qualquer que seja a sujeição que eles, aparentemente, obrigaram, na verdade, se trata do fato de que eles lhes eram companheiros e não valetes; eles viviam com eles em sociedade e não em servidão; eles eram mais ligados por afeição que por dever. A Nudez e a Pobreza são os dois Soberanos títulos sobre os quais os animais juraram fé e homenagem ao homem. É por isso que nós adquirimos este império absoluto sobre eles. A Natureza não creu oferecer uma maior vantagem à liberdade de nossa Razão do que sujeitando os animais a essa mesma liberdade. E, para falar a verdade, essa liberdade não vem dela, não porque ela tem aversão a nós – como pretendem os que a caluniam – mas apenas porque ela não nos pôde dar; ela tenta, ela se esforça para no-la oferecer tanto quanto lhe é possível. Ela faz, certamente, muito na sua impotência, contribuindo com seus desejos e sua afeição. Mas ela faz mais do que pode, contribuindo com seus cuidados e sua pena. Ela nos conserva, pelo menos, esta liberdade nas coisas que ela não nos deu, a fim de que dependa de nossa escolha admiti-las ou rejeitá-las. E, por medo de que elas estejam inseparavelmente ligadas a nós, caso não fôssemos constrangidos a nos servirmos delas, ou não tivéssemos um vínculo e uma obrigação necessária a elas.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 22-24