CAPÍTULO SEGUNDO
Diremos ainda uma vez: assim como o ardor que queima nosso interior é incomparavelmente mais violento do que aquele que o Sol nos faz sentir mesmo quando está a pino, quando o cão do Céu o irrita com suas mordidas, por assim dizer [é interessante observar o que vem anotado no original latino: “Maior dolor (ilegível) sui est, quam perpetientis hostilia: sicut maior est calor, qui a praecordiis, & febri per artuum medullas surrepit, quam quem morsu Caniculae irritatus Sol iaculatur e caelo”. A imagem do cão que morde o sol (morsu Caniculae irritatus Sol) é a que deu origem ao termo “canícula”, que é usado para descrever uma condição do tempo meteorológico associada a ondas de calor. No hemisfério norte, está associado à passagem aparente do disco solar pela constelação de Cão Menor (conhecida, na França, como Canicule); ndt]. A dor que sentimos por causa dos remorsos é muito superior à dos males mais difíceis, que nos suscitariam o ódio contra nosso inimigo mais mortal. Ela ultrapassa a crueldade dos Tiranos mais desumanos, ela a enriquece, ela se vale de todas as suas horríveis invenções para atormentar os homens. E certamente que pena sofreram aqueles que experimentaram seus suplícios! Não foram inferiores àquela que o crime de Orestes [Orestes é um personagem da mitologia grega, filho de Agamêmnon e Clitemnestra. Segundo o relato mitológico, Orestes, depois de ter matado sua mãe, sofre amargamente o remorso, fugindo das Erínias – personagens mitológicos, em forma de mulheres aladas, com serpentes como cabelos, que empunhavam tochas acesas e chicotes, e perseguiam infratores. O relato é descrito por Ésquilo, na tragédia “Eumênides”; ndt] lhe fez sentir sem precisar estar sob ferros e dificuldades e tendo como carrasco apenas a si mesmo! Os antigos habitantes de Damieta, tendo que punir um parricida, e não crendo que as leis fossem severas o suficiente para punir esse tipo de criminoso, não se valeram nem do rigor do fogo nem do veneno das serpentes, eles simplesmente o abandonaram às censuras de sua consciência, como se o tivessem livrado a carrascos ainda mais impiedosos e cruéis, eles o condenaram a manter, durante três dias, a vista presa ao corpo morto, a fim de que a presença e a força desse objeto infeliz, redobrando seu remorso e a grandeza de sua pena, igualasse a enormidade de seu crime. Esse foi também um tormento que o famoso Tirano de Agrigento [no original latino não há referências a nomes. Sabe-se, no entanto, que a tirania foi instalada ali com Fálaris (?-554 a.C.). E, certamente, é a este tirano que Nieremberg se refere, como se verá a seguir, visto ter sido este tirano a instaurar o Touro de Perilo como instrumento de tortura; ndt] julgou mais estranho do que aquele a que ele submeteu o autor do seu Touro de Bronze, que lhe parecia apenas um meio medíocre de exercer sua crueldade, e que lhe servia apenas para suas vinganças ordinárias e para os menos culpáveis – para os mais culpáveis, ele se valia dos remorsos de suas consciências, de forma que, concedendo-lhes viver, ele acreditava, sem dúvida, os estar tratando com mais rigor do que lhes oferecendo a morte. Mas, um suplício tão grande como esse já era usado muito tempos antes dele. A justiça Divina fez com que o primeiro criminoso do mundo o sofresse. Aquele para quem a morte, ainda inocente e virgem, fez seu primeiro fruto, Caim, não foi julgado digno de uma pena menor do que a de ser despedaçado pelo remorso de seu fratricídio [no texto francês, o tradutor, erroneamente, anotou “parricídio”; ndt]. Ele teve a vida como punição, até mesmo a certeza da vida se é que se pode dizer isso quando se fala da guerra contínua que os malvados vivem em sua consciência, ou de uma vida que sofre com os contínuos remorsos. Não seria melhor uma morte cruel? Nossos primeiros pais mesmos – se podemos nomear dessa forma aqueles que nos deram mais a morte do que a vida [trata-se de Adão e Eva; ndt] – experimentaram também a severidade desse castigo. Confundidos com sua desobediência, e pressionados por seus remorsos, eles acreditaram que Deus, tendo lhes dado a Vida, lhes fazia menos uma graça do que um suplício. A Imagem de seu crime, seguindo-os em todos os lugares e os pressionando, os fez querer se afastar de si mesmos, a fim de evitar um objeto tão funesto, os fez querer poder se livrar, através da morte, da vergonha cruel que sua consciência os fazia sofrer. Mas, eles tentaram encontrar lugares distantes e escuros, eles quiseram se esconder e se sepultar em cavernas e nos abismos; mas seu mal, em todos os lugares, não tinha remédio; os furores internos que eles sofriam tornavam inúteis todos os cuidados que eles tinham para se aliviarem. Eu vos pergunto, que suplícios maiores pode haver depois disso, seja nos extremos rigores das leis, seja na crueldade dos Tiranos, seja na justiça natural, seja na Divina? Esta é uma verdade que Deus, a Razão e a Natureza confirmam, e da qual a consciência, por perturbada e furiosa que esteja, é uma séria e fiel testemunha.
NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 282-284.