quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Terceiro meio - Capítulo III

CAPÍTULO TERCEIRO
Nós gostamos quando estamos vestidos com um belo par de sapatos cujo uso é pensado apenas para o chão; e o operário se gloria de fazer adequadamente algo que, tão logo é feito, se exporá à sujeira. Será que somos tão covardes e negligentes para com uma vestimenta tão rica como é a virtude, que é feita para o Céu e cujo uso diz respeito a Deus mesmo? Cada artesão se dedica a trabalhar de tal forma que o mais rigoroso dos Censores não seja capaz de encontrar nada de repreensível. O homem, tendo que se formar, tendo que se produzir, tendo que produzir a mais nobre e excelente de todas as obras, não deveria, por isso mesmo, sofrer de tal forma com esse trabalho a ponto que se possa dizer que não há nenhum defeito no produto final? Assim como só podemos saber acerca de uma árvore a partir da bondade de seus frutos, só podemos pretender ser dignos de estima a partir de nossas ações virtuosas; elas são nosso preço e nossa glória; elas nos permitem adquirir uma glória que não tem preço. Portanto, visto que nossa dignidade depende unicamente de nós mesmos, e que ela só e indubitável na medida em que fazemos o bem, fazemos nosso preço e nosso valor de estima, não nos contentemos de ser medíocres; façamos o bem no grau mais eminente, para merecer a glória até ao mais alto ponto. Um sábio da antiguidade disse muito razoavelmente que cada um é filho de suas obras e, nisso, por uma nova e rara maneira de geração, temos o ser daquilo que o tem de nós [no original latino, Nieremberg simplesmente anota: "Unusquisque filius est operum suorum: rarum generationis genus, esse ab iis, quae a se sunt". Não há, portanto, referência explícita ao “sábio da antiguidade” e sequer aparece como citação a frase que o tradutor anotou como citação; ndt]. É desta genealogia que devemos nos gloriar. Nossas boas ações são nossos ilustres Antepassados; são os monumentos e os títulos de nossa nobreza. O excelente privilégio de nossa Razão, de nos podermos compor a nós mesmos, e nos formarmos tal como nos agrada ser. O grande operário do mundo só teve, parece, como desígnio começar e esboçar o homem; ele lhe deixou, tão logo o criou, o cuidado e os meios para se terminar, e lhe colocou entre as mãos os instrumentos necessários para chegar à sua perfeição. A virtude não é um bem que outra pessoa poderia adquirir para nós; ela precisa de nossa ação; sem dúvida, é o fruto de nosso estudo e de nossa indústria. Ela não é comercializável nem pode ser traficada, assim como as coisas da Fortuna. Ela não pode ser nem emprestada nem trocada. E quando nós a adquirimos, não é melhor que ela venha de nós e seja nossa produção? Seguramente que vale mais. E Deus mesmo, que nos destinou para sermos suas imagens vivas, não espera que sejamos Expectadores inúteis de seu desígnio; ele quis que nós sofrêssemos no rumo do destino junto com ele, e que fôssemos os artesãos da obra cujo Arquiteto é ele. Dar-lhe-íamos o imenso desprazer de ver essa obra imperfeita por causa de nossas faltas? Se algum desses grandes Escultores que a Grécia coroou por terem feito as imagens dos Deuses, trabalhando na estátua de Júpiter, e se entediando com um oficio tão nobre, a tivessem deixado inacabada para se ocupar em outras funções vis que poderiam ser realizadas pelos últimos dos homens; se, abandonando o ouro e o marfim esse Escultor fosse se sujar as mãos para tirar o barro das rodas; que julgamento se faria dele? Haveria uma desculpa legítima para uma tal fraqueza? Nós não somos menos ridículos quando nos ligamos ao lixo dessa vida e quando deixamos imperfeita a imagem viva da Divindade. Consideremos a ofensa que ela [a Divindade; ndt] recebe de nós quando esse é o assunto. Nós não apenas não temos o cuidado de representá-la como ela é, e de fazer com que a figura responda à dignidade de seu modelo, como também fazemos o modelo mesmo defeituoso; nós o imaginamos sem olhos, sem mãos e sem pés; sem luz, sem ação, sem progresso rumo ao bem; nós o tornamos incapaz de exercer a virtude, não sentimos vergonha de fazer dele um monstro. Como nos afastamos de sua verdadeira semelhança! Quais as proporções pode ainda haver entre as cópias e o original? Podemos julgar isso a partir dessas palavras de um Padre entre os Gregos [no original latino, Nieremberg escreve: "... inquit in suis theologicis magnus Theologus Maximus, & addit..."; trata-se portanto de São Máximo o Confessor (c. 580-662) que também é conhecido como Máximo o Teólogo ou Máximo de Constantinopla; ndt]: Aqueles cujos hábitos são conformes à virtude carregam, profundamente impresso, o caráter da Divindade. Ligados que estão à matéria, são considerados como Deuses. A virtude, neles, cumpre o papel do corpo; eles têm por alma um conhecimento puro e infalível; eles possuem as vantagens da natureza divina.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 296-298.

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