quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Quarto meio - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO SEGUNDO
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MEIOS infalíveis para adquirir a felicidade.
QUARTO MEIO
QUE é preciso purificar a Vontade de tudo aquilo que é capaz de perturbá-la

CAPÍTULO PRIMEIRO
Fomos plenamente instruídos acerca das notáveis vantagens que a Vontade bem ordenada produz. Ela é suficientemente reconhecida por ser a causa infalível do maior bem que podemos pretender nesta vida; sem dúvida, ela produz soberanamente a paz e a alegria do espírito. O que nos resta é aprender os meios de nos servirmos de um tão nobre e raro instrumento; e como conhecemos sua excelência, é preciso aprender a usá-lo. Não basta demonstrar o que deve ser colocado em ação, mas é preciso aprender o fim e a maneira, se bem ou se melhor. Após a capacidade do operário, é preciso considerar a bondade do instrumento. Após termos nos tornado sábios na arte de adquirir a felicidade, é preciso aprender de que condição deve ser aquilo que nos permite tê-la. Um mal instrumento é capaz de fazer falhar o mais hábil artesão do mundo; é preciso, antes de tudo, que ele seja adequado a seu uso, que não haja nele nada que possa causar dano à mão, nada que impeça ou retarde a operação. É necessário, sem dúvida também, procurar a precisão, sobretudo, naqueles instrumentos que estão sujeitos mais facilmente à ferrugem. Nossa Vontade é assim; ela não permanece pura por muito tempo; ela se suja muito rapidamente com as sujeiras das paixões. Sua parceira natural é a liberdade; ela tem o direito de se colocar do lado de quem ela quiser e de agir da forma como ela quiser; mas seu dever é agir razoavelmente e agir para o bem. Ora, aquilo que a desvia e lhe faz tomar um partido errado é a perturbação que lhe causam as paixões, que a corrompem tão fortemente e a pervertem de tal forma que ela se torna inábil para todo tipo de ação legítima. Da mesma forma como um olho bem esclarecido e dos mais penetrantes que possa haver não conseguiria ver o fundo de uma água lamacente, também o entendimento mais claro não é capaz de discernir o que quer que seja em meio à perturbação do espírito. Um espelho que remexemos sem parar não é capaz de representar nada com constância; da mesma maneira, uma alma agitada não permitiria ao entendimento ver algo firme e certo. Que chama seria capaz de resistir à violência dos ventos que sopram contra ela como se fossem uma conspiração para apagá-la? As paixões não são um esforço menor contra a luz do espírito. Um Piloto, a quem a tempestade arranca de suas mãos, de um só golpe, o leme, não seria capaz de conduzir seu navio nem mantê-lo na rota. Alguma vez já teremos visto como aqueles que estão sujeitos à vertigem sentem a cabeça rodando de tal forma que nem parecem estar na terra, como eles têm tonturas que fazem com que os objetos mudem de face, e vertigens que lhes fazem ver outros objetos que não existem? Já vimos a imagem do estado deplorável a que as paixões reduzem o espírito. Depois de o ter, por muito tempo, agitado e colocado num tão estado de desordem que não é mais capaz de conhecer as coisas, nem reconhecer a si mesmo, enfim, elas o reviram e o fazem decair  da vantajosa posição que sua condição lhe permitia ocupar. Não seria um triste e miserável Espetáculo ver um Príncipe sendo tratado indignamente por sujeitos revoltados? Ou ser despojado de todas as marcas de sua grandeza? Ou derrubado de seu trono e colocado entre correntes como se fosse um escravo? Esse é o mal que atinge o nosso espírito quando os apetites se rebelam. Eles corrompem, eles gastam o entendimento; eles o tornam escravo do prazer dos sentidos. De um conselheiro sincero e fiel, eles fazem um complacente, um bajulador infame, que só age segundo suas ordens, que só diz, covardemente, aquilo que lhes pode agradar, e não tem mais vergonha de fazer todas as coisas segundo seu bel prazer.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 315-317.

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