quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Primeiro meio - Capítulo XXXIV

CAPÍTULO TRIGÉSIMO QUARTO
Além do mais, é próprio do sábio se dedicar a toda sorte de emulação, bem como a toda conformidade de ofício com a morte; e, por uma voluntária separação de seu espírito e de seu corpo, nunca espera dela o bem de gozar dos privilégios da outra vida, pois essa é uma vantagem que ele recebe da Paciência. Por ela, nosso espírito, escapando de sua prisão mortal e se desembaraçando dos liames do corpo, se esforça e se eleva até ao Céu. Da mesma forma como um rio transborda e que, tendo inundado o campo, toma as casas e começa a ganhar terreno, obrigando os habitantes a subir para as partes altas para se garantirem contra sua violência, assim também quando o corpo se encontra atacado pelas dores e quando é pressionado de alguma maneira, a Alma se recolhe inteira no entendimento, como se se recolhesse num local de soberana segurança; e se desembaraçando da violência do inimigo, ela se retira para onde ele não é capaz de chegar. Esse Rei Lacedemônio [no texto original, Nieremberg cita nominalmente o legendário rei espartano Agesilau I (?- c. 786 a.C.), que foi o 6º rei da Dinastia Ágida; ndt] que nós não sabemos se deveria ser nomeado Filósofo ou grande Capitão, visto que foi digno dos dois títulos, que foi cruelmente perseguido pela gota, tendo sido visitado pelo Filósofo Carnéades [a única referência encontrada acerca desse nome é a do filósofo platônico Carnéades (214 a.C. – 129 a.C.); porém, há um evidente problema histórico, visto que é impossível a visita desse último àquele primeiro, separados que estão por 600 anos. Identifiquei um segundo Agesilau que, no entanto, não resolve o problema, já que viveu entre os anos 444 a.C. e 360 a.C.. Não há outros reis espartanos com esse nome contemporâneos a Carnéades, de quem não encontramos outra referência histórica; ndt], vendo que ele acabara de entrar, e que já queria sair como se estivesse cheio de uma justa pena de ver que a natureza tenha respeitado tão pouco a Virtude a ponto de não isentá-la das enfermidades da Vida e de ter, parece, assujeitado mais os bons do que os maus, disse [ao filósofo; ndt]: ficai, porque nada do que acontece ali chegou até aqui, mostrando-lhe os pés e a cabeça respectivamente, querendo lhe dizer que a parte superior não sentia nada das desordens da inferior. E certamente é preciso dizer que vem o espírito duas excelentes vantagens desse retiro – estar como se estivesse no Céu – que é o fato de haver comunicações mais particulares com ele e o fato de receber de mais perto suas inspirações; além de ele participar mais abundantemente de seus favores, ele participa disso direto de sua fonte. De cima, ele consegue ver o que se passa embaixo, as dores e os sofrimentos do corpo, com a mesma segurança de que olha de uma janela um combate que se dá na rua. Por mínimo que seja o vínculo que ele tem com o corpo, ele pode se gloriar de ser livre, e pode mesmo dizer que ele antecipa o gosto da liberdade do futuro. A morte rompe suas mais fortes e potentes cadeias; e livrando-o de toda sorte de impedimentos, o torna absolutamente capaz de chegar ao princípio de todas as coisas. A Paciência não faz menos; e se ela não rompe suas cadeias, ela as alonga tanto, ela alarga de tal forma o circuito de sua prisão, que a extensão que ela lhe confere vale quase como a liberdade inteira. Com isso, esse divino ardor que a anima, esse fogo celeste tão puro e tão cheio de prontidão que se pode nomear o espírito do espírito mesmo, estando tomado por adversidades como se fosse por ventos contrários, adquire nisso, sem dúvida, muito mais vigor. O fogo nunca é tão ardente do que quando está circundado por água e quando se encontra cercado por uma densa nuvem, vigiado por dois inimigos naturais – o frio e a umidade: quando isso acontece, ele força, ele rompe sua prisão, ele explode em trovões e relâmpagos, quando todas as passagens estão obstruídas de forma que o fogo do espírito se evapora e exala em fumaça; esse é o efeito que lhe causam os desejos e as volúpias, ele sai não apenas de uma só vez e com violência, mas também, por mais pesado que seja o corpo, ele o eleva, às vezes, e o arrasta para suas paixões. Nós não nos surpreendemos em nada ao pensar no quão brusca e poderosa é a atividade do fogo, ao pensar em suas operações subterrâneas, em como age com forças desiguais para carregar prodigiosos edifícios e fazer voar pelos ares montanhas inteiras, por assim dizer.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 276-278.

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