segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Terceiro meio - Capítulo II

CAPÍTULO SEGUNDO
O Arminho, esse nobre animal, que parece se desfazer de sua pele apenas para revestir os Reis, e que serve como seu adereço e pompa, prefere muito mais morrer do que se sujar. Ele conserva sua pureza através da perda mesma de sua vida. Que desculpa pode haver, depois disso, para os homens que estimam menos a Virtude do que um animal estima sua pele? Ou para homens que preferem simplesmente viver a viver com honra? Ou ainda para aqueles que optam apenas pela vida, em detrimento daquilo que lhes pode conferir lustro e ornamento? Que evitam, assim, aquilo que pode tornar a vida agradável e feliz? Esses homens, certamente, são indignos, pois amam a vida por si mesma. Mas, ela só deve ser considerada como um instrumento necessário para a prática da virtude. Se respeitarmos apenas isso, será o suficiente para que a consideremos cara. E seria uma estranha perversão da ordem, seria cometer uma injustiça, fazê-la servir ao desprezo da Virtude. Eu vos pergunto, o que pode haver de mais vergonhoso e miserável do que não merecer viver, por não ter preferido a morte à infâmia? Pelo contrário, o que pode haver de mais digno e nobre do que viver gloriosamente na memória dos homens por haver evitado a infâmia através da escolha voluntária da morte? Que coroa carregam, por causa de uma tão bela eleição, esses dois famosos Atletas, Dâmocles e Pelágio! O primeiro porque preferiu se entregar à morte do que consentir com as brutais paixões de um Tirano [ao que tudo indica, trata-se do protagonista de uma anedota moral criada por Timaneus de Tauromenium (c. 356 a.C. – 260 a.C.). Desse relato é nasceu a expressão “espada de Dâmocles” para indicar a insegurança dos que têm grande poder; ndt]. O segundo, por se garantir das amorosas perseguições de um Rei Bárbaro, se deixou cortar pedaço por pedaço, preferindo perder a vida que a inocência, e sofrer mil suplícios a trazer uma única mancha de impureza no corpo [parece que se trata de São Pelágio de Córdoba (912-926), que foi martirizado pelo califa Abderramão III. É venerado pela Igreja Católica como exemplo de virtude e de castidade juvenil frente à homossexualidade. Segundo os relatos de seu martírio, foi morto com tenazes de ferro que o cortaram pouco a pouco em praça pública; ndt]. Pode haver mais glorioso troféu do que aquele que se eleva pela derrota do vício? Ele quis morrer para permanecer casto. Arrancaram-lhe todos os membros, mas não lhe tiraram uma gota do contentamento; e, não tendo nem mãos nem braços, ele tinha o suficiente ainda, ele foi suficientemente poderoso, suficientemente forte, para lutar contra a potência de um Rei e destruir todas as máquinas de sua cólera. O que mais posso dizer a esse respeito? Mais do que ter a vergonha de se ver sujo, ele não teve o mínimo horror de se ver morto. Esta glória não foi menos corajosamente aceita por essas ilustres Virgens, essas Heroínas do cristianismo, Apolônia [Santa Apolônia de Alexandria (?-249), martirizada durante a perseguição de Décio, teve todos os dentes arrancados ou quebrados sob tortura; ndt], Margarida [encontramos várias referências a santas com este nome, mas nenhuma com precisão suficiente para indicarmos como sendo aquela a que se refere Nieremberg; ndt], Águeda [Santa Águeda de Catânia (c. 230 – 251), martirizada também durante as perseguições de Décio, teve os seios arrancados com tenazes; ndt] e Brígida [também não encontramos uma referência precisa quanto a esta santa; ndt]; e isso lhes custou a ruína inteira de sua beleza. Como se elas tivessem desejado isso para punir a inocente traição que ela [a beleza; ndt] lhes havia feito, ao acender a más paixões no coração dos Tiranos; assim, elas expuseram com alegria a beleza que tinham à crueldade dos carrascos, elas se viram, cheias de alegria, tendo o rosto e os seios sendo desfeitos para que se conservasse sua pudicícia, elas se gloriaram  da deformidade de seus corpos como se fosse a melhor e mais segura guarda que poderiam dar para a beleza de suas almas.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 294-295.

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