sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Quinto meio - Capítulo III

CAPÍTULO III
Mas, nisso, ficamos, às vezes, descontentes, tomando aquilo que deveríamos combater como aquilo que nos deve assistir, tomando nosso inimigo como nosso ajudante, tomando o Vício como Virtude, porque ele pega emprestado dela as aparências e se cobre das mesmas armas. Para evitar um tão perigoso desprezo, devemos saber que, para cada virtude, se opõe um vício que se lhe assemelha, que a contradiz em todas as coisas, que é seu imitador, por assim dizer, que se apresenta a nós sob uma falsa aparência de amigo, com demonstrações de querer nos socorrer; mas, com efeito, ele tem o desígnio formado de nos levar à perdição, na medida em que sejamos de tal forma imprudente aponto de nos confiarmos a ele. Assim, a temeridade é vista, muito frequentemente, como valor; a fineza como prudência; a avareza como economia; a ambição como grandeza de coragem. Essas falsas e travestidas virtudes nos abordam com outros rostos que não os seus próprios, e algumas vezes se apresentam com rostos mais belos ou, pelo menos, mais agradáveis do que, naturalmente, são. Cada uma delas [das falsas virtudes; ndt] se reveste do nome da verdadeira Virtude por quem ela quer ser tomada, e nos seduz sob uma forma diferente da sua. Mas, o que são essas marcas e fantasmas que não têm nada de real ou de sólido, e só se sustentam sobre a impostura e sobre a favorável impressão que desejam causar em nós? O que são essas cabeças artificiais que são agradáveis apenas por fora, mas são ocas e vazias por dentro, visto não terem nem sentidos nem razão e, consequentemente, não terem aquela parte verdadeira que conferem o ser e a perfeição àquilo que elas imitam? Aqui, podemos nos lembrar da história daquele Persa que, parecendo-se tanto com o legítimo sucessor do Império – que fora morto por causa da inveja de Cambises –, pretendendo se colocar em seu lugar, foi reconhecido como enganador, pois não tinha orelhas [não encontramos referências acerca desse personagem no original latino e, na busca por detalhes sobre essa anedota histórica, também não encontramos fatos sequer semelhantes aos descritos pelo tradutor. Há, na história do Império Persa, dois imperadores com esse nome: Cambises I (?-559 a.C.), filho de Ciro I e Cambises II (?-522 a.C.), filho de Ciro II e neto de Cambises I; ndt]. A Virtude não é, em nada, imperfeita, como é quem pretende se passar por ela. Ela é inteira e sem defeitos; ela tem orelhas, ela escuta a razão; ela tem docilidade e obediência. Ela permanece firma e imóvel contra tudo o que a ataca. Ela encontra seu porto mesmo em meio à tempestade. Enfim, para marcar aqui aquilo que mais confunde o Vício, aquilo que lhe retira a máscara e descobre plenamente a sua impostura, somente ela é capaz de nos fazer obter o glorioso título de Reis de nós mesmos, somente ela é capaz de nos fazer adquirir soberanamente a felicidade.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 324-325.

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